domingo, 1 de dezembro de 2013

a uma passante...

Prelúdio:

Deus teve pressa ao criar o mundo. Sete dias era muito pouco tempo, mas institucionalizou-se e o discurso funcionou como deveria – sustentando a sequência de luz, água, seres e as sombras, quando, enfim, descansou e não quis mais saber da criação. Deixando somente uma plaquinha ao lado da árvore do “Não mexam aqui, senão vocês vão se arrepender”. Claro. Era só chegar ali nos limites da construção e observar que o resto todo ainda era abismo. Lugar onde as maçãs caíam podres e sem eco, pois era tudo queda. Nenhum fim. Nenhuma finalidade. Porque até Deus tinha tédio. O tédio é que fez com que tudo fosse criado. Um tédio de domingo, oco e recorrente, como dentro de algumas cavernas, a cantiga insistente do pingo d´água na estalactite. Batendo, sempre a mesma nota da lágrima que se renova sem saber que é outra. E furando a pedra num ponto inútil para sustentar o provérbio: “...tanto bate até que fura.”
O lado do abismo, esse vazio imenso, é de onde se originam os pensamentos. Dentro da mente reside o modelo exato dessa abertura infinita. As providências do tempo, movendo sem fim a corda na direção vertical invertida: tempo é pra cima. Por isso o desejo que a planta tem de crescer até ser árvore com seus galhos em prece. As coisas são ao infinito pra cima, saindo, despregando-se do chão, em torno tudo ar.

E tudo isso porque você estava do outro lado da rua e, na direção contrária a sua, você avistou a moça sem uma mão

Imagine que existe uma sala anterior a esta em que o corpo está agora. Nesse outro lugar, como convém, há uma fila que se estende ao último e mais e mais vai se enchendo, sem que se possa enxergar. Um ponto além, adiante, sem fim. Para quem está lá na frente, inútil tentar avistar o último da fila; e quem acaba de chegar, um esmorecimento, um desânimo por não divisar quem está na dianteira. Aqui estão suas roupas de viver. Uma para cada fase, percebe?! Essa aqui, você rasgará bem no joelho esquerdo, numa dia de chuva, você tentando dominar sua bicicleta azul: e não será a primeira queda – outras já houve, outras ainda por vir. Mas a roupa de infância dará conta dessa fase sem que você a destrua. Você vai olhar com muita atenção o lado de dentro, de onde jorra um sangue vermelho. Vai ser bonito. Vai doer também. Nesse momento, o corpo está querendo chamar sua atenção para o quanto de fragilidade e urgência existe nessa estrutura. Mas você vai se distrair novamente e vai disputar algumas brigas, vai se sentir extremamente vaidoso em ser o melhor em alguma coisa que consideram importante, sua habilidade, por exemplo, em ter uma boa mira para acertar as bolinhas de vidro dos outros e lançá-las para fora do jogo. Isso vai trazer uma alegria tão boa. Você não vai nem querer tomar banho antes de dormir, para que a sensação do dia não lhe escape. Os gritos dos outros meninos torcendo por você e a certeza de que você é realmente bom nisso, nessa coisa de mirar e jogar. E muitas manhãs virão, com essa mesma roupa da infância, alguns meninos vão mudar de rua, algumas ruas vão, inclusive, desaparecer diante dos seus olhos, o chão vai ser coberto, casas vão ser construídas, ali onde existia o lugar em que você era o campeão. E também, isso você não vai notar imediatamente, uma outra roupa vai substituir aquela da infância. Uma roupa diferente. Em construção dentro de você, não virá pronta, como pareceu vir a anterior. Você vai perceber ela se construindo em você, porque dessa vez você vai estar bem atento para o fato de que as coisas mudam. Principalmente porque você já viu acontecer com o seu cachorro, quando ele morreu depois de ter engolido aquele tipo de veneno que jogaram no jardim. Estava lá. Não está mais lá. E você vai começar a olhar desconfiado demais. Então, é quando chegarão as palavras. Que erro! Se você, por exemplo, não desse atenção, a distração continuaria empurrando você para roupas maiores, que ajustassem corpo e pensamentos. Mas nesse momento, nesse exato momento, você prestou atenção e viu: as coisas mudam. O que poderia ser bom. Mas o seu jeito de se apegar ao que está aí é que faz você insistir e ficar. E pensar demais a respeito. Estava pensando demais a respeito quando um dia desses, atravessando uma rua, você estava do outro lado da rua e você avistou a moça sem um braço.

Nesse momento, o tempo parou

Ok, há muito em que se pensar. E também era hora de decidir não tentar agradar demais  – essa coisa de pensar o que o outro estava pensando sobre o que estava acontecendo em vez de ver o que realmente estava acontecendo, essa coisa tinha que acabar. Foi quando justamente ali, no lado oposto da rua, porque é certo que o lado certo da rua seria onde ela estava: a moça sem uma mão e um pedaço do braço surgiu. Que milagroso cruzamento de tempo e espaço foi aquele que fez com que o seu corpo, essa roupinha que você tem vestido ultimamente, estivesse exatamente ali diante dessa evidência viva da coragem de existir? Uma moça vestida de preto, mas não era luto e não parecia triste. O barulho da rua, os carros indo e vindo, o olhar atento para o outro lado do cruzamento. Ela segurava uma bolsa preta com o coto do braço enquanto que o outro braço inteiro nu formava o contorno exato da figura induplicada. Você quer olhar? Olhe. Não deixe nunca de olhar pois é pra isso que as coisas e as pessoas estão aí, para serem olhadas. Mas, por favor, saiba olhar; para que ela não pense que você está olhando somente para aquele pedaço de braço e para a mão que não estão ali. Não, não! Pelo contrário! Você diria e tentaria explicar para si mesmo a emoção que sentiu em ver ali diante de si esse espetáculo irrecuperável de leveza e certeza e arte diante dos seus olhos na rua: a moça sem adjetivos, pois o fim daquele braço era justamente o abismo de Deus. Depois da árvore do conhecimento, ali adiante, onde supostamente tudo deveria ser cercado de perfeição, o final distorcido, a ausência, essa queda. Deus não desenhou todo o paraíso, somente o caminho até ele. E o caminho era esse braço que se acabava antes da mão.


Um segundo inteiro de eternidade, mas saiba-se um imbecil completo...


As coisas inúteis que os seus olhos já enxergaram e as outras coisas, tudo isso, formando quem você é. E mesmo você diante do espelho observando com um desespero quieto o modo como o tempo vai devorando lenta e sarcasticamente sua pele, tirando a cor e o brilho de vida que há pouco estava ali. Seu egoísmo de querer-se eterno entre todos os seres, por supor, veja que ingênuo é você, que faz muita falta para o mundo, esse seu humor, essa sua irreverência. Distraia-se, vá ali. Colha uma flor no jardim. Mas você não tem jardim. Então é melhor sair um pouco de casa para que o tempo não venha com tudo e domine e paralise. Corra, ande, vá. Na rua. No cruzamento. Tão bela, tão jovem. Ah, se Deus fosse generoso e desse a você, um imbecil poético, apenas um momento com ela. E o que ele faz é somente empurrar você para dentro do abismo, lá dentro onde está a mão direita da moça e o pedaço do braço que falta. Vamos, imbecil! Complete essa imagem, já que para você não está bom assim como está! Vai! Tente fazer melhor do que você fez. Tome aqui esse lápis. Rabisque o restante. Enquanto que ela, do outro lado da rua, não vê você. Pois ela quer somente atravessar a rua o mais rápido possível e resolver uma questão qualquer para ir para outro lugar. O corpo dela anda com passos firmes. O seu corpo está atordoado, segurando com os dois braços e mãos do seu desejo a parte faltante da moça. Você amaria eternamente e a vida inteira aquele contorno incompleto, pois, claro, aí nessa parte que falta é que está a resposta para todas as suas questões. A mão é o resto do mundo. Solto, difuso, imperfeito. Você não quer olhar tanto, olha apenas por um segundo, um mínimo segundo. E o seu olhar sustenta, por esse breve tempo, toda uma estrutura, um relâmpago e logo mais a noite. As coisas inacabadas, inconclusas. O fuso incerto das horas. Você quer morrer exatamente ali, naquele pífio instante, por ter avistado a moça e nunca mais, jamais, poder vê-la novamente. Pois você percebe que aquilo é diferente de tudo. É diferente pela ousadia da outra parte que está lá. Há muitas formas no mundo, muitos modelos e tipos e suas expressões e tudo. Aquilo que os olhos podem ver e não se embasbacar é porque já existe em duplicata. Mas não a moça. Ela é a perfeição incompleta. Algo de tirar o fôlego. O que fazer, depois de ter avistado o paraíso? O que fazer, depois de saber que esse paraíso é incompleto? Amar a parte que falta no final daquele braço e desprezar todo o resto? A moça que estava ali, forte, altiva, incorruptível, pelo contrário, não quer mais a mão que falta. A moça que estava ali não desprezou todo o resto, pois se algo mínimo falta, o que sobra será apenas o resto. Antes, a moça construiu um elogio à parte existente. Ergueu uma construção imensa, imponderável de corpo e habitou dentre dele uma alma. E como você é pequeno do outro lado da rua. Você sente vontade de chorar. Você pensa, talvez, naquele pai tão imbecil quanto você, que deitou sobre o corpo da mãe e explodiu sem força o sêmen dentro do corpo dignamente deitado da mãe, talvez sem prazer, talvez porque, talvez, ... por quê? E você, por um instante, do outro lado da rua. Este é o filho. Ele é tão bonito. Ele vai viver. Ele vai existir e se chamará, certamente, Antônio, João, Pedro. Vamos festejar, vamos comemorar! Os deuses, lá de cima, por um instante, saíram do encosto de seus tronos e apontaram o ouvido em direção a sua casa, e depois deram uma olhada mais atenta, tentando ver quem era você que tantos festejaram. Era você! Nasceu mais um. Vai viver. Um breve instante. E depois crescerá e verá as coisas como elas realmente são. Então, porque nós não, pensaram os deuses, fazemos com que ele, em determinado dia e em determinado cruzamento, aviste, do outro lado da rua, a moça. A moça ali do outro lado da rua. É para isso que você existe. Foi só por isso que você chegou até aqui, para avistar a eternidade nesse breve instante. E depois que ela se for, você vai perceber que, de agora em diante, será sempre aquela mão faltante que puxará você do abismo e jogará você de novo para o corpo da vida, atento, firme, completo e inútil. Pronto para mais um jogo.  

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

dois pro Solda e um pra você

1.

de tanto trabalhar o verso
o poeta é a rima de família

2.

Chega de trocadilhos
Agora eu quero trocar dólares


3.

o mal da mula
é acumular culpas
que cabem em mil garupas

quarta-feira, 9 de outubro de 2013

três para o dia


1. na cabeça

tomou dois goles de vergonha na cara
e prometeu:

da próxima vez
jogaria no gato
e lembraria de conferir o resultado

2. cólica

sempre que ficava sem
fósforo
filtro de café
tempo pra não fazer nada

achava a vida uma coisa besta sem fim

3. condução

longes distâncias
um bilhete algo que diz "estou tão feliz..."

rapte-me, please
tem feito dias brancos,
como um caderno sem pauta guardado em cima da prateleira
e a ordem expressa de que ninguém, nenhuma criança,

 poderá nele rabiscar

segunda-feira, 30 de setembro de 2013

seu jeito de pronunciar as palavras...

estamos em um outro tempo agora,
como se o vento, a chuva de ontem, as flores que surgiram
(algumas bem estranhas, exigindo cuidados e aflições)
dissessem: olhem mais devagar

nem mais acreditar em poemas
as palavras tão incômodas como o pó que se acumula insistentemente
entre os livros da estante,
não lidos, não consultados, nenhum poema desperto de seu marasmo

o latido de um cão, na rua, pode muito mais do que um verso
a sua quase lágrima, se eu dissesse ou quando eu dissesse:
"Você está tão errada que eu não vou nem discutir..."
tem a força quieta do silêncio que nenhuma metáfora
[jamais romperia

intrigadíssima, abismada e inútil como um esquilo
que rompe o primeiro gelo do inverno
com o casco de uma unha, sem resposta

e ainda assim,
aguardante

Para que depois, bem devagar, possa colher as pétalas que caem
no outono de teu sopro, ao anoitecer

domingo, 28 de julho de 2013

tão felizes

às vezes eu admiro você,
às vezes não
a maioria das vezes, quando você está sendo você, nesse corpo que hoje é você e com sua exata voz e com suas palavras
nessas vezes eu posso admirar você
nisso, você continua bebendo mais, pois foi isso que você sempre gostou de fazer
você faz isso desde sempre
no começo você descobriu que era um jeito muito bom de desprender aquele peso da alma
aquele que não permitia que você desse um salto e deixasse vir tudo aquilo que você queria dizer
e que estava de certa maneira travado no teu corpo
em todas as partes do corpo, como se quisesse escapar e não conseguisse
nas mãos, você poderia manter (isso eu já vi acontecer) as mãos paradas por muito tempo
e os pés bem imóveis, enquanto seus olhos olhavam para todos
achando que todos estavam bem e que todos conseguiam se expressar com uma confiança livre de tudo
eu do meu canto, olhava para você e pensava como que alguém consegue ter tanto controle e se manter tão quieto tão imóvel somente olhando
eu admirava você nesse momento porque eu nem sabia que na verdade você estava muito agitado por dentro do seu espírito
e tudo o que você realmente queria era criar superpoderes, porque de algum modo você achava que tinha superpoderes, mas o grande poder era mesmo esse que prendia você inteiro
e quando eu soube disso, eu não admirei você
não admirei porque eu talvez também me sentisse assim,
mas comigo, olha, comigo era bem diferente
eu já havia perdido os meus superpoderes há mais ou menos um século quando eu conheci você
foi bom conhecer alguém que não se importasse,
quer dizer, você se importava quase sempre,
mas quando você estava perto de mim, talvez você pensasse que eu mantinha um segredo
o mesmo segredo que você, aquele segredo infantil (desculpa eu dizer) de pensar que nós dois,
eu e você, tínhamos superpoderes, que éramos especialíssimos e que o mundo
bem, o mundo era uma esfera infeliz com pessoas equivocadas que não conseguiam enxergar
os nossos superpoderes, e eu via o quanto em volta de sua figura existia essa força gigante
se dissessem que em algum lugar havia um limite o qual ninguém havia ainda ultrapassado
você chegava pra mim e dizia, estou sabendo que em tal lugar tem um lance que vale a pena
e nós simplesmente íamos lá, eu ia porque eu sabia que você definitivamente ia chegar lá
observar tudo calmamente com aquelas suas tragadas longas e aquela sua indiferença suprema
de quem está achando tudo muito interessante e não vê a hora de começar a agir
para que a roda simplesmente começasse a girar e quando começasse a girar bem rápido
era assim - você ia estender a mão e eu saltava para dentro à velocidade que estivesse
lá dentro nós estávamos parados e conseguíamos nos comunicar bem
com os movimentos leves, tudo muito suave e relaxado, sem problema algum
mas por dentro, lá dentro de mim eu sabia que eu estava me cansando e que eu queria sair
não que eu tivesse parado de admirar você e que a terra do nunca não fosse um lugar
realmente interessante para gastar a eternidade
é que eu pensei que talvez a potencialidade dos seus impulsos
vinha dessa minha capacidade de acreditar em você
e que se eu parasse de acreditar tudo estaria perdido, o movimento iria se desfazer
você ia voltar a ficar completamente imobilizado, quieto, sem palavras
e quando algumas vezes eu desisti de acreditar em você
era quando você voltava pro mundo e fazia tudo o que o mundo pedisse que você fizesse
quem olhasse de fora e não soubesse o segredo,
pensava no quanto a sua vida estava indo rápido e como todas essas realizações eram perfeitas
enquanto eu sabia que o que você mais queria era voltar a  flutuar
tão alto (desculpa o lírico) que o sol, o puro sol,
deixasse o seu rosto morno e os seus olhos brilhantes, longe de qualquer julgamento
o mais impressionante é que quando você ficava assim, nesse estado de casulo
era quando eu mais admirava você, quando eu via toda a possibilidade
do que só você podia fazer por você mesmo, como uma criança que se diverte sozinha na chuva
o que eu queria, e isso nunca vai acontecer, menos ainda agora, pois agora
você está convencido por completo de que não há mais tempo pra absolutamente nada,
o que eu queria era que você fizesse algo somente por você e por mais ninguém
e então eu poderia volta a admirar você, porque ultimamente eu não tenho admirado ninguém
e por que afinal eu admiraria?, parece que somente as árvores são dignas de admiração
compre bens perecíveis, tenha amores perversos que fazem você gozar e sofrer
arraste-se aos pés daquele que está disposto a desferir-lhe um chute
dizem os anúncios luminosos e todos querem mais e mais
os velhos, os mais velhos sabem que a eternidade dura no máximo dez anos
o tempo em que podemos nos dar ao luxo de usufruir de tudo o que destrói
foi justamente por esse tempo que os pensamentos começaram a surgir
os densos pensamentos carregados de uma irresistível beleza pelo contraste que significava
ser tão jovem e pensar em coisas profundamente densas (era sem querer?)
quando eu mais admirava você, nós admirávamos
nós dois admirávamos e sabíamos que, se um dos três pudesse fazer, esse seria você
e você não fez, continuamos os três, para constrangimento de nós mesmos
então, raras vezes eu admiro você
admiro quando penso que você não fez porque talvez tenha pensado
que seria útil continuar, e ver se nós dois resistiríamos
então, eu não admiro você












quinta-feira, 25 de julho de 2013

sentido

o amor ainda não cresceu
é pequeno embaixo das cobertas,
tímido, inquieto, mexe-se muito, o amor

enquanto as palavras ganham o mundo
o amor não aprendeu a se comunicar
sente fome, chora
sente sede, chora

às vezes, fica quieto, olhando os pés
como se não soubesse que a ele mesmo
pertencem aqueles pés

quando o amor crescer,
quando o amor for grande e souber
só então as palavras serão pequenas
e não farão o menor sentido

domingo, 7 de julho de 2013

depois de depois de amanhã

M. notou pequenas imperfeições em várias partes do corpo. O olho era uma câmera rápida e precisa - as rugas ao lado da boca se estendiam  como galhos pensos com o peso dos frutos, a gravidez avançada, a água derramando dos jarros pela distração do menino. 

Elaborou cinco coisas que ainda conseguiria fazer bem, apesar da idade:


Era capaz de enlouquecer com o mesmo vigor de antes, mas em consequência lhe advinha um cansaço absurdo e a sensação de que não valera a pena tanta loucura elaborada bruscamente em noites insones, passos incertos, respiração ofegante. Em represália, agarrava-se aos livros sagrados (quase era possível dizer "sangrados"). Lia trechos carregados de sabedoria que não reverberavam no oco infinito do seu coração. Interrompia o esforço em angariar alguma fé, com aquela vaga ideia de comprar uma passagem, mudar de cidade, de amigos, de roupas, cabelo, falar sobre trivialidades que excluíssem por completo a literatura.

- Mamãe perdeu três quilos, desde que morreu
- Ficou lindo, * é uma artista, como conseguiu tamanha perfeição?
- Mutações, transformações, genética, tecnologia avançada

tirar os pelos do corpo, alongar aqueles músculos atrofiados pela falta total de exercícios, abrir mais, outras expectativas, conversar com pessoas mais jovens e compreender que é tudo uma roda, um arco, um ciclo, 

Os álbuns públicos me causam um certo enjoo.
A você sim? A mim também. E *, tem tido alguma notícia?
Ele conseguiu o emprego

Anotou os projetos a serem realizados em menos de dois anos. 

(pessoas gordas, definitivamente, são mais felizes, as que são felizes, claro
ela está tão gorda e perdeu completamente aquele ar juvenil, a cara está inchada, a pele também não tem nenhum brilho, o cabelo desarrumado, - enfim, uma lista infinita de tudo o que não deve aparecer nos álbuns públicos, mas ainda gosta de muita coisa, e fala pelos cotovelos, mas pratica meditação e yoga regularmente)

27 anos e um pânico louco de engordar demais e ficar igual a mãe 
Mas aos 27 anos ainda se pode reverter muita coisa. A indústria da saúde & beleza cresce dia após dia, com truques impressionantes para se parecer mais jovem e saudável. 

Inevitável não lembrar de Morte em Veneza.

Você sabia que *. agora tem aplicado botox naquele casal de amigos que, gentilmente, acompanharam o drama que ela viveu depois da separação com *?
Ficou mal, realmente mal, começou a fazer análise com um excelente especialista, indicado por *, que logo lhe receitou uma dosagem cavalar de antidepressivos. No começo, foi dificílimo, mas agora está tão bem que já se prepara para participar de provas esportivas puxadíssimas. Resistiu, superou. 

"Superação", ela me disse. Ainda na metade do tratamento. 
E naquele mesmo lugar em que tanta coisa nos tinha acontecido, desandou a falar de todo o drama, como havia sido, detalhe por detalhe, com registro de fotos e vídeos de cada acontecimento especial que resumia em várias mídias o que representou toda aquela história. E me contou como, agora, quer dizer, naquele momento, estava pronta pra outra, "página virada", "vida que segue", 

Não acreditei, óbvio. 
Mas continuava bonita. Mais ainda do que quando eu a conheci. Principalmente porque a beleza agora sustentava um peso de grave tristeza - o que nos desperta sempre uma revolta pessoal contra os deuses por ter ferido de dor um belo rosto. Por ter perturbado os dias felizes e encantadores que viveu até então.

Havia, de uma hora para outra, se tornado uma pessoa normal, sujeita aos revezes do tempo. Impossível tocar aquele rosto, conspurcar aquele momento. Seria covardia. E a covardia é algo tão triste e feio que converte qualquer gesto em algo grotesco. 

O efeito, * me disse, consiste em aplicar algumas doses entre as linhas mais marcadas da testa e ao lado dos olhos. Funciona, sabia? Se quiser, pode tentar. 
Você vai fazer em você?
Óbvio que não. 

Mas retornam. E a cada seis meses nova dose deve ser aplicada.
Não retornam. Estão ali. Aguardantes. Como a cobra espera o pássaro sair para o primeiro voo, até a queda. E o bote. 
Não seja trágica.  
Eu sou trágica. 

* expunha todo o procedimento com uma compreensão de especialista. As unhas pintadas de vermelho, segurando um cigarro de filtro branco, um verdadeiro profeta divulgando as boas novas do nosso tempo. Os muitos artifícios para roubar o fogo dos deuses e evitar a velhice e a consequente morte em vida que essa etapa confere a todos os enrugados, encurvados, sem viço, sem vida. Os que, definitivamente, devem ficar fora dos álbuns públicos.  

* não transita por essa vida alheia, mantém sua privacidade, trabalha feito uma louca e guarda uma boa reserva para prazeres sofisticados. Especialmente viagens. Gosta de se hospedar em hotéis caríssimos, de onde sai munida de óculos escuros e roupas de corte impecável para um passeio por bons restaurantes e visita a monumentos turísticos menos procurados, coisa de quem leu bem o almanaque. O que só comprova que não é possível manter por muito tempo a tristeza quando se é jovem e endinheirada. Mesmo assim, o baque foi dos grandes, e * ainda precisa se recuperar bem.  

Douglas, o nome do namorado dele é Douglas. Moram juntos a dois anos, colecionam antiguidades e criam um weimaraner. A cada seis meses ele recebe aplicações de botox nas marcas mais profundas do rosto. Douglas assiste a tudo atento, acalentando o cachorro no colo. 

fotos de:
antes e depois

* fica feliz com o resultado, 
* fica feliz com o resultado, 
e todos ficam felizes com o resultado, 


Mas a gente sabe o quanto é tudo provisório e que é preciso, urgente, cultivar algum jardim, 
Só dessa maneira as mãos aprenderão a tocar e reconhecer, mesmo de olhos vendados, a presença viva do amor.

Mas a gente sabe o quanto é impossível cultivar por muito tempo um jardim que renda frutos viçosos e duradouros. E mais ainda, a gente sabe que a presença do amor é tão provisória quanto as aplicações que * faz a cada seis meses. E que apenas os covardes ou os verdadeiros santos conseguem se manter fora da roda vertiginosa dos desejos incontroláveis. 

Muitos são os refúgios. Nenhum, no entanto, capaz de abafar os rumores do mundo. 

terça-feira, 2 de julho de 2013

você pode tomar banho de chuva, mas não corra

you should like it
- mas eu não
why not
- não sei

continue,

estava de tocaia, desde o amanhecer,
vigiou o relógio (quais as últimas notícias?)
nada que lhe agrade,
vista-se conforme o tempo - e se o dinheiro for suficiente:

compre: COMPRE: compre:

mais roupas
aparelhos eletrônicos
botas de couro
(e uma pontinha daquela  ideia de se tornar vegetariano,
mas não nessa vida,
nessa espera-se outro tipo de ideia vigente)
bolsas
e mais eletrônicos
pacotes de viagens para todo o ano
e aquele seu amigo,


compre os seus amigos

compre: COMPRE: compre:

como uma tinta fresca que escorre na parede e o  máximo que se pode fazer é aparar com o pincel é desenhar uma outra coisa improvisadamente, essa é a técnica extraordinária do rascunho literário (já saiu uma vez em alguma revista literária que ninguém leu)

sms:

 você tem esparadrapo? me cortei
está sagrando muito?
não muito
ali naquela gaveta do banheiro, a última
vamos ao cinema hoje
amo! <3 p="">[ela disse, naquele bilhete esquecido no banco de trás do carro do amigo:

te amo,
você é linda, em todos  os aspectos,
mas a minha loucura pôs tudo a perder
- ou estou sendo romântica além da conta? -

estamos tentando mudar o modo como o ocidental lê os textos, mas sempre será da esquerda para a direita?
sim, primeiro a esquerda, mas no final, direita,
da esquerda para direita


o que ele disse sobre os noticiários?
- de hoje alguma coisa me chamou atenção: a apresentadora fez questão de dar um forte abraço de aniversário na doméstica, e dizer que eram muito amigas, há muito tempo

(um prazer, trabalhar aqui contigo! durante todos esses anos, viu?

GOLPE

(um prazer ter você como minha amiga

GOLPE

(obrigada pelo esforço que vocês desenvolveram até aqui, esperamos que possam contribuir mais ao longo de todo o período

GOLPE DOS MAIS BAIXOS

(estamos sem dinheiro no caixa, você sabe como que são as coisas, não vai dar pra cobrir as despesas e, por isso, se você não se incomodar, eu vou tirar do teu

CU,

pode ser?

Claro, fique perfeitamente à vontade, estamos aqui para doar os nossos respectivos cus para que vocês tirem lá de dentro tudo o que for suficiente para cobrir os CUstos. E mais: ficamos muito felizes por ajudar. Tudo o que permita a esse país a esse povo se tornarem mais cultos, mais eficientemente letrados, preparados, e que tudo seja feito para esse fim tão nobre, tão valoroso pelo qual você vem lutando esses anos todos... mas você não acha que deveria, pelo menos, usar roupas mais humildes, sapatos mais gastos, enfim, você não acha que é melhor, antes que eles desconfiem e saiam por aí dizendo

OS NOSSOS DIREITOS!!!!

não acha?, viu como a apresentadora se agarrou àquela pobre negra dizendo que as duas eram amigas de longa data? Entendeu? É bom que você, inclusive, fique um pouco em casa, saia menos, gaste menos, antes que desconfiem que - você sabe, as pessoas desconfiam, e elas podem começar a cercar a sua casa, os seus passos, começar a pesquisar o diâmetro do seu pescoço, e zás!

hoje em Curitiba as roupas eram insuficientes para tanto frio, se for preciso: fique em casa, mas seja produtivo:

um psicanalista que está desaparecendo

Acorda de manhã, sente o pau um pouco duro ao amanhecer (isso talvez seja bom!). Nenhuma revolta. Talvez devesse ser um pouco maior, talvez. Mas não pensa. Ele é suficiente, assim como as roupas que veste para aquele dia serão suficientes, pois faz frio e não quer sentir que falhou em escolher a roupa ao sair de casa de manhã. O chão do banheiro é frio. Encolhe os dedos dos pés e a sensação chega a reverberar nas linhas da testa. Olha-se no espelho. Sente-se um pouco ridículo. Todas as manhãs, é costume que ele se sinta um pouco ridículo. E ao longo do dia será um grande esforço para que essa sensação se desfaça. Desprenda-se dele. É assim que se lembra das primeiras aulas, ainda no curso de graduação. Um vídeo que mostrava pessoas famosas afirmando o quanto se sentiam ridículas. É preciso ser um gênio para se deixar filmar confessando-se ridículo:

"Sinto-me tão ridículo que o que me resta é tentar criar alguma coisa para esquecer ou, pelo menos, acomodar em algum canto da alma essa sensação, que também não deixa de ser ridícula." (Le Courbusier, talvez)

Gostava do tempo em que era clássico e ao mesmo tempo moderno ler o jornal da manhã (edição impressa, diga-se) enquanto tomava o seu café. O virar das páginas monstras o tornavam obsoleto para o dia, obsoleto para vida, ultrapassado como a própria palavra "obsoleto" o era. O fato é que, se o sujeito está vivo, é preciso que isso se justifique pelos seus atos ou pela culpa que sente por não agir. A respiração um pouco ofegante marcavam o compasso do andar lento e curvado. Um homem magro:


É isso que ele é: Um homem magro!



Não se esquece de pegar a caneta. É que não precisa mesmo. Há muitas canetas no consultório. E o que afinal anotar? Deveria usar alguma agenda eletrônica. Tantos botões a serem apertados durante o dia. Quando era criança, ouvia nos noticiários que bastava que UM homem apertasse UM único botão e tudo ia pelos ares. E quando fumou o primeiro baseado, quando perdeu a virgindade com aquela amiga gorda e quente, quando decidiu que era viado e que gostava mesmo era de uma boa benga, quando afirmou para o seu pai que iria se tornar psiquiatra, quando decidiu adotar um filho com o seu companheiro. Não era simples assim para UM único homem. Havia muitos botões. E todos eles gritando:



sua senha, por favor, senhor.


Mas tudo bem. Tudo bem. Dentro do carro era quente e poderia ligar o aquecedor e ficar mais quente. Ligar o som e ficar mais quente. Passar a mão ao longo da gravata e ter a certeza de que é um homem ajustado dentro do limite do que pode fazer pela própria vida. Está tudo perfeitamente bem. Freia bruscamente quando percebe que estava a ponto de ultrapassar o sinal vermelho.

(Você pode ser mais tranquilo, mais gentil para com aqueles que você colocou no alto pedestal dos deuses,)








sexta-feira, 28 de junho de 2013

ensaio de orquestra: anotações ligeiras para o discurso do dia do fim do mundo






e quais são as chances de tudo correr bem?
eu sempre gostei muito da vida, da minha vida, sempre fui um cara pra frente, entendeu?
(esse aqui é bom? nunca vi esse)
e de repente sofri uma mutilação, eu que nunca tive medo de nada,
de nada
de nada
depois fiquei sem a visão, perdi completamente a visão, eu sou mono (mono o quê?) monocular, alguma coisa, eu usava muito a visão periférica, entende? fui pra Paris, fiz cinema em Paris, fotografia, tudo artes que estão relacionadas à visão,
mas você não devia ter interrompido assim, bruscamente, isso é um baque,
eu quase ficava louco,
vá deixando aos poucos,
parei, e comecei a enlouquecer, me dava uma ansiedade louca,
não podia ter parado assim,
medo de nada, nunca tive, nada
de nada
de nada
(esse eu já vi, adoro esse diretor, muito bom, acho que vou levar esse)
e você?
eu não gostei muito do documentário do W.B. Achei que ele estava velho demais, decadente, com aquele esgar involuntário nos cantos da boca, não sei se ia me dando uma pena ou um medo de ficar daquele jeito, igual, e ter que ser apresentado publicamente daquele jeito, dizendo as mesmas coisas, a voz dele muito amarga
não, não tenha medo disso, você jamais será uma gota do álcool ingerido por W.B. somado tudo o que ele bebeu ao longo de toda a vida, jamais, jamais,

véspera: o incendiário saiu para comprar fósforos
pode avaliar como as coisas estejam agora?



sms: estou passando aí, ele disse que não vai, o médico proibiu ele de tudo

esta é a casa, veja,
antes que mude tudo
está bacana aqui,
parece vc...


(não quero mais escrever)
somente respire, devagar, respire devagar que os seus pensamentos ficam também mais vagarosos,
é a mudança de tempo, e aí complica tudo,
hoje de manhã eu estava seriamente pensando em ir fazer o exercício junto com os outros velhos, mas não fui, acordei indisposta, e ontem também não fui dar aula de português pra menina (mas adianto que ela está aprendendo bem - a mãe também tem feito aulas, e é linda a alegria que ela expressa por estar aprendendo frases ridículas do tipo:

on tchi fo cê nas éu
é u
nas i
ê i
taiw an

e dispara a sorrir disparatadamente como se o coração dela jorrasse felicidade pelos poros

(não quero mais escrever, é inútil)
o que você sente ao acordar de manhã?
tem um resto de culpa da noite anterior,
,

não escreva!
a literatura distorce tudo

por ter esperado,
compare a literatura, a boa literatura, ela é como uma boa composição, nada sobra, existe luz e espaço, janelas abertas por onde um pássaro pode entrar, desenvolver um pequeno ensaio de voo e sair como se nenhum obstáculo o impedisse,
céu

(não quer mais, percebe que está errado, desarrumado, como um cabelo na sopa
um cabelo surpreendido dentro da sopa deliciosa, e aquele olhar de desapontamento

- não.


de constrangimento, desolação,
tristeza de achar que deus fez isso para zombar)

você diz sensações físicas?
(acordou de mal humor,
e avisou, botou uma placa na frente da porta,

CUIDADO: HOJE EU ACORDEI DE MAU HUMOR)

e justo no dia em que ia receber a visita da menina que fabrica flores
ela tinha adiantado que passaria por lá, logo de manhã,
os dois iriam ensaiar aquela partitura em que um pássaro entra numa sala
iluminada e espaçosa,
desenvolve um pequeno voo
 e sai

 como se

e por quê?
será que tem a ver com indigestão, noite mal dormida, os dias
ininterruptamente nublados?
aquele comentário estúpido da senhora dizendo que se ele fosse se apresentar teria que no mínimo amarrar esse cabelo,


desculpe, não foi isso que ela quis dizer
você não ficou chateado, ficou?

o que foi isso no seu olho?



espaços limitados


existem alguns lugares que costumaM determinar que tipo de comportamento será desenvolvido ali dentro

um motel, por exemplo
(há quem goste. e pague para isso)
os únicos de que eu gosto são aqueles que ficam na estrada com uma placa de

BATES MOTEL

é decididamente constrangedor ir a um lugar desses e não se comportar conforme o que pede o lugar
mas não tente fazer um esforço enorme

curtir comentar compartilhar


as moças trabalham lá há muito tempo, algumas. você chega, pega uma senha, sinal que você não tomou café da manhã em casa, você é um desses tipos que não tomam café da manhã em casa, resolve tudo na rua, e a partir de então já fica clara a sua incompetência, fica explícita a sua inabilidade para habitar um espaço, morar,
você é um daqueles tipos que quer sair de casa, quase sempre, como se dentro de sua casa houvesse pistas demais sobre sua incompetência, sua inabilidade existencial, e você se aplica em arrumar rapidamente o que possa ser arrumar (existe um vazio dentro da casa - o vazio de uma presença - uma presença que sabia - que sabia - sabia - existir dentro da casa e dar a ela um movimento gracioso - talvez seja justamente esse vazio o que obriga você a sair de casa - expulsa-se de casa, esse imenso vazio - e salta - como um gato - um salto para fora, para o lado de fora onde existe um espaço todo anônimo, nenhuma acusação mais direta), e sai,

ao caminhar, descobre, enquanto o sinal não abre, que o porteiro do hotel da frente
um hotel elegante
costuma praticar uma sutil vingança para com aqueles que o obrigam a passar o dia inteiro abrindo e fechando portas,
sacar os dedos no nariz porcamente
e emporcalhar porcamente a maçaneta de um jeito porco
porcamente

há coisas obscenas espalhadas por todos os lados, o mundo é covardemente violento

um casal sai do hotel,
o moço, muito bem vestido, adianta-se e

abre a porta para que sua elegante dama saia para o saguão do hotel e os dois possam passear pela cidade nessa bonita manhã de um sol que acaba de aparecer

substrato que o acompanha até a padaria, como um desses cachorros perdidos que talvez farejem no andarilho um traço de cheiro do antigo dono e persiste o caminho até - talvez - divisá-lo numa esquina: o pensamento vai com ele




























domingo, 9 de junho de 2013

damascos frescos

Gritava Eu te amo sempre que passava um cavalheiro, distraído a olhar as botas. E ele arrancava a cabeça do chão e ficava mirando as janelas para acertar de qual delas teria vindo esse grito. Ela., recolhida entre cortinas, continha-se em riso. Divertia-se muito com isso. Até que um, um dia, antes mesmo que ela pronunciasse as palavras lançou longe o olhar direto para a moça - que, no hábito de dizer, continuou. Como a imagem estranha surgindo no fundo dos copos espelha um rosto que não temos certeza de que seja o nosso enquanto olhamo-nos suspeitos bebendo o líquido, lá do fundo do poço dos olhos eles se olharam. E foi certo o que viram. 

Uma desordem surge intensa com a luz da manhã. As mãos do acaso não descansam - recuperam incessantes os fios da véspera dos dias. Um anjo dormita entre lençóis encardidos. E qualquer tecido perderia pureza ao lado da imagem. Asas imensas recolhidas aquecem a nudez, enquanto os pés rosados e de pouco uso repousam com a estranhez da cabeça de Medusa. Em volta do quarto, o dia se agita em mil preocupações. Não compreendo a necessidade de ordem que nos impele a distrações inúteis - quero somente aproximar o rosto e sentir o sopro leve do anjo adormecido; imaginar que sonhos se formam em seu sono; correr meus olhos pelas delicadas mãos, os arcos dos olhos em meia lua e cílios, o traço suave da boca. Desenhar em mim todos os contornos. E desta única manhã, sustentar toda a existência. 

terça-feira, 28 de maio de 2013

sushi

Podaram mil vezes os galhos da macieira, com um objetivo insano de que ela se tornasse a mais bela e perfeita macieira de que já se ouvira falar. A luta constante pela perfeição, entanto, impedia que a macieira, a seu tempo, compreendesse a natureza dos elementos que a alimentavam: o vento, a água, a força dos galhos se expandindo. Em vez disso, a pobre árvore enrijeceu, contraiu-se, fechou sua existência para tudo o que a sua volta chamava para vida. Mas esta é tão resistente que com a morte da macieira, outros bichos fartaram-se de existência. Adentrando-se em suas raízes, pelos vãos apodrecidos espalham líquens de odor insuportável aos seres da luz. Em tudo há resistência. 

Desconfia de tudo. Prefere restar parado, inerte, sem pensamentos que o desviem da intenção de não se envolver, não se misturar, até que tudo passe, o grande ruído, os movimentos tenebrosos abaixo do céu. Os cinco dedos das mãos não querem nada agarrar. Se chove ou faz sol, a isso não dá atenção. Ficaria melhor sem prestar a nada um comentário. Os olhos, se observar bem, movem-se numa rapidez de átomos - quase parados. 

quando isso aconteceu?

A primeira vez em que esperou, viu que tudo ia ser uma longa espera. E decidiu não querer. Ainda que muito quisesse, mas já pra agora, no momento em que a mão leva o alimento à boca e este é certo, sem temor, sem resistência. Estava sentado num banco de escola ouvindo a voz que saía da garganta de um homem. Percebeu que era uma voz oca e cansada - uma voz sem alma. Muito mais grave é que a insistência com que o homem repetia sílaba por sílaba aquelas palavras provocava um estado de torpor (ao contrário dele, que sentiu medo de que aquela fosse uma doença e que ele pudesse, em adulto, contrair um estado pleno de inexistência). Saiu correndo. Mas no momento em que se afastava, percebeu que em várias salas daquelas em que havia garotos sentados em silêncio olhando o nada, outros homens e mulheres moviam seus lábios e lançavam suas inflexões ocas e cansadas para aquelas cabeças enfileiradas obrigadas a se manter ali. O mundo todo era um hospício, concluiu. Para onde fugir?

E o mundo se encheu de palavras e as palavras se especializaram em discursos. Cada discursos pegou, agarrou, sustentou o seu quinhão e transformou-se numa cornucópia insólita que produzia a cada repetição um bolo enorme de dinheiro, sustentado apenas pelo dono da cornucópia - que enfiava ali dentro homens e mulheres aptos a repetirem milhões de vezes os mesmos discursos. Enquanto a risada sinistra ecoava. Não quero! Não posso. Engula isso. Você tem que continuar. Vai viver de quê? Apaguem suas pegadas, disse o dramaturgo. Apaguem, não deixem registros. De outro modo, eles o apanharão e o farão repetir discursos dentro de salas. 

- Penso em viver com você. Num lugar onde não haja espelhos e eu não possa ver que estou envelhecendo. O tempo me arrasta muito rápido para o lugar onde só haverá cansaço. (Todos os dias, a planta exige água). Não tenho muita amizade com o tempo. Ele fugiu de mim, e agora me quer de volta. (A planta não vai pedir a ninguém que a torne úmida). Ontem, ouvi gemidos. O alimento deve ser muito bem escolhido. Ande. Atormente-se mais um pouco. Essa é a sala das aberrações - ali, naquele canto, está a máquina onde se formam os pensamentos imperfeitos. Uma criança pode com um desses pensamentos portar-se como um velho incapaz de se mover. Algumas vezes enxertamos essas sensações em seres muito pequenos, que acabaram de chegar dentro do centro da vida. (Roube uma flor, e leve para o seu amor). Ela espera que você aguente mais um pouco. Pode não ser difícil. (Penso em viver com a flor e todos os dias - o quanto for preciso - alimentar esta flor e ver suas pétalas crescerem. Como as penas de um pequeno pássaro que um dia entenderá que nasceu somente para o voo e os espaços infinitos). 

sábado, 30 de março de 2013

chá

 Tirei a minha dúvida em relação ao gosto do chá. Era mesmo a ameixa desidratada que favorecia que aquele gosto específico surgisse, junto com as folhas e as gotas de limão. Gostaria de, a partir de pequenas coisas, tirar conclusões sobre coisas maiores, mas não é tão simples. Mary Jane me diz: "Basta tomar o chá". E eu acho que ela está certa. Mesmo que nenhuma sabedoria seja extraída disso, é importante somente tomar o chá, em vez de ficar tentado encontrar de onde vem exatamente esse gosto que faz com que o chá se torne absolutamente irresistível. Na verdade, nunca ficará com o mesmo gosto do chá que eu tomo junto com Mary Jane, preparado por ela, inclusive. Mas ficou próximo, quase. E foi a ameixa, isso eu descobri sem sabedoria. Nem mesmo sei o que significa sabedoria. Acho, por exemplo, que as crianças são grandes sábios - fazem somente o que querem, se as deixarem que façam. O que compromete que isso permaneça é que durante tanto tempo os adultos começam a determinar o que é certo ou errado até que em determinado dia todos estejam habilitados a não saber mais nada com naturalidade. Começamos a precisar de regras escritas, olhar no manual sobre o que seja certo e o que seja errado. É preciso isso. É preciso aquilo. Às vezes institucionalizam coisas que parecem tão óbvias, que até se torna estranho uma obrigação por fazer o que já parecia ser naturalmente certo. E começo a desconfiar de quem julga os outros que não agiram “certo”. Afinal, foi uma vontade ou uma obrigação? Então num primeiro momento não sei de fato se aquilo que eu quero está certo ou se aquilo que eu quero está errado. Até que decido não querer. Simplesmente não quero. Não encontro mais a vontade de considerar justo e certo aquilo que devo fazer. Acho, na verdade, extremamente insuportável. Tudo que esteja institucionalizado. O que deve ser feito se torna espantosamente uma imposição. E me espanta, realmente, encontrar pessoas que gostem de fazer o que fazem simplesmente por serem obrigadas a isso. Eu só quero tomar o chá. E que me deixem em paz. 

quinta-feira, 28 de março de 2013

gato branco na neve


Depois da noite escura, veio a Dúvida. E a dúvida usava luvas. Os pés da dúvida avançavam como se recuassem, porque havia uma onda que estourava sem ímpeto - ainda que fosse enorme. Olhei nos olhos da dúvida. A hesitação puxava o brilho dos olhos para um abismo infinito. Um parque de diversões vazio. Todos os brinquedos desligados. Quis mostrar que era um lago e não um túmulo. Quis aproximar, fazer ver, trazer para perto do mesmo modo como se faz com a criança que teme ver um passarinho machucado. Esqueci o corpo em volta. A luz solar e macia, esqueci-a. Estava diante da dúvida com interesse intenso. Entrei pelos olhos e fui percorrendo os corredores. Devagar para não acordar outros monstros antigos que haviam se acomodado em regiões que a memória temia visitar. Escutei sussurros. Estava lá. No último canto, no fundo do coração. Era uma dúvida juvenil e ao mesmo tempo antiga. Sorriu quando me avistou. Olá!
  


Parece que o Amor passeia em volta da minha casa munido de todos os instrumentos de comunicação criados para inventar distâncias. Parece que o amor trabalha in numa dessas bases petrolíferas, meio do mar. É índio de tribo antiga, sinais de fumaça: Onde está? Venha me ver! Cadê? Meu cabelo está tão curto, Rapunzel! Joga você! Parece que o amor tem compromissos importantíssimos pelo mundo e o mundo é infinito e não sobra um intervalo que seja para (nos andaimes da construção) trocarmos aquele pedaço de pão. Parece que o amor é tão feliz e deslumbrado que tem uma pressa enorme de ver as cores, ouvir os sons, provar do gosto e tocar batuques pra acordar multidões. Parece que o amor é louco que chegue logo o fim do mundo pra constatar: Eu não disse?! Olhe como é bonito!
[Mary Jane]

  

A Paciência é uma jovenzinha serelepe, gasta o dia todo a olhar pela janela e avisar os que estão dentro da casa: É vindo! Esperemos! As tranças soltas no vento, sapato envernizado, vê sol e vê a chuva, nuvens muitas. A paciência é leve e perfumada, tem os olhos claros e vivazes. Vive a espantar as moscas dos pensamentos sombrios que impedem que ela enxergue - a qualquer momento! - apontando lá na curva da rua um arremedo de sim! Uma certeza: a paciência tem memória fraca e esquece o tanto de passado que se arrastou até ali. Lembra um pouco o meninozinho que pede esmolas à porta do asilo. Mas é bem diferente. Não mira os olhos tristes dos velhos abandonados.


O Desespero é velho e gordo, arrasta sandálias pela casa à procura de uma extensão pra plugar mais uma tomada de um eletrônico novo. O desespero é úmido e pegajoso, limpa as mãos no pano sujo da pia e leva à boca comida que restou da noite passada. Uma convicção: o desespero não se admite ser feliz. O desespero parece um pouco a Hilda Hilst dos últimos dias. Mas é bem diferente. Não poetiza. E menos ainda enxerga Deus dentro da boca de um cão.



Esta viúva senil que vocês estão vendo é a Ansiedade , arruma-se todos os dias para sair apenas como o treinamento para o dia em que realmente sairá. Vasculha todo o armário na esperança doida de achar aquele exclusivo vestido que nunca será encontrado. A ansiedade demora a adormecer por ficar o tempo todo se levantando para conferir se todas as portas estão devidamente trancadas. E por fazer isso tantas vezes é que aos saltos de coração ela mesma vira a chave na fechadura livrando-a da tranca. A ansiedade é falsamente atenta diante de alguém que a aconselha, quer reagir de imediato - fugir dali e chocar-se contra o muro duro do mundo. A ansiedade não sabe nada do amor nem das cantigas de ninar. É burra burra burra e acha que está sempre certa. A ansiedade nem desconfia, mas está com seus dias contados.

O Ódio deixa as unhas crescerem para arranhar com força a pele dos próprios ombros. Enquanto conversa, durante um amigável chá, o ódio sente a dor vertendo das próprias feridas; concentrar-se nisso impede que ele esgane o pescoço do seu afável convidado. O ódio fala devagar para não engasgar. Junta um cuspe grosso dentro da boca, na gana interrompida de lançá-lo ao rosto de seu gentil interlocutor. O ódio é covarde. Masturba-se e ao jorro do gozo cai em prantos quebrando tudo o que vê diante de si. Ao confessar suas vinganças ao louco que lhe empresta o ouvido, aponta o dedo ameaçador e franze a boca sussurrando tudo o que fará contra seu suposto opositor assim que tiver oportunidade. O ódio é absolutamente incompatível com o amor, embora frenquentem os meus seres.


É possível ainda senti-lo, ele está aqui, próximo. Bem próximo. O Medo veio aqui hoje. O cheiro do medo é esverdeado. Sempre que ele está por perto as mãos fogem para junto do rosto. Colam-se às faces e os olhos se esbugalham espantados diante da sua presença. Á volta dele, os pés se perdem a andar sem destino. Não há água que amenize a sede do medo. Não há silêncio que sufoque a massa de vozes que se avolumam no centro oco dos pensamentos. O medo é preciso. Vale-se de uma única palavra e penetra o ínfimo ânus da palavra até que ela se dilacere e se ponha a supurar. Não posso com o medo. Ele monta feito cavalo morto às minhas costas mesmo perto do sono chegar e acende a lâmpada da insônia fartando-se em goles grandes de desespero líquido até que se rompa a tênue luz da manhã e tudo recomece. O medo não tem limites.


 A Fome, quando a ela nos apegamos, engorda em nós o desânimo. Como uma velha que fia inconstante, a fome modela o nada a partir do corpo revelando a morte que aguarda por dentro. Os olhos brancos da fome admiram fantasmas de luz que frequentam um mundo sem tempo e sem história. É de foice esmerada a mão bruta da fome, trabalha a cada corte as covas da forma; afunda as carnes e afina os veios em que o sangue possa correr vibrante. Diligente, penetra nos cantos mucosos e suga aloprada a água restante. É mofina, a fome. Osso duro osso: entorta, desidrata, mata – mas antes atinge o cerne da alma de onde a expressão firme brotava; e emudece até o tutano o gesto e a fala.


Eis que vem chegando a Desconfiança. Falem baixo. Pode ser que ela não goste de ouvir qualquer mínima piu. Tratem-na bem. Sem exageros que ela possa aferir daí algum artifício ou estratégia. Outro dia, a desconfiança, imaginem!, mandou pesar três vezes o quilo exato da compra. Olhou o papel, conferiu o endereço, arrumou os óculos, franziu a testa: nada a convencia de que era ali mesmo o lugar em que haviam marcado. Mas por que marcar ali?! Alguma coisa havia! Ela matutava. E lá no alto, uma palavra balança malandra no trapézio do juízo da desconfiança; eis que salta e cai estatelada na alva cara da descarada: Então era isso! Um coro maldito se põe a ecoar. Então foi por isso! Está explicado o porquê do entrevero! Vou tirar a limpo é agora mesmo. E sai derrubando parede arrumar confusão.



Rapaz velho estudado, graduado com diploma, o Orgulho. Ninguém vê. Só ele em segredo admira os troféus guardados embaixo da pele enrugada. A vida inteira aguarda a grande e merecida chance. Teve uma vez um amor, a moça no salto da inocência perguntou se ele não achava estranho o pouco caso que os da capital faziam aos que vinham do interior. O orgulho afundou as mãos no bolso das calças e encostou com os dedos suados o plástico verde do documento. Nunca mais quis saber de um dia querer mais sair com a moça. Não serve pra mim. Muito da enfeitada. Uma vez, uma chuva daquelas da braba! O amigo passou e deu com a buzina: Está indo pra onde? Estou bem, gosto de chuva – respondeu o orgulho, as botas todas borradas de barro. Coitado!

  
A Dor dói. Onde dói? Onde dói? A dor dói. Como dói. A dor dói tanto dói que eu me espanto de encanto. É aqui que a dor dói. É aqui! Não percebe?! Ela dói. E se encurva todinha. Se arrasta, se assusta, se esconde, se encobre. Contorcida em si mesma, chorosa e convulsa. Ela dói! Está doendo. É em mim. Não repara? Em meu corpo, tadinho! Ai, ai, ai! Como dói. Liga a mãe. Liga o pai. Corre ao médico. Ai, me acode, doutor! É agora que eu morro. Dói tudo. Olha aqui se é febre. Dá um nome. Batiza. Atenção, todo mundo: é minha dor. Ai, que dói. Da pontinha do dedo ao inverso da orelha. Dói cabelo, pescoço, dói olhar. Só de olhar. Dói. Dói. Dói. Essa dor, onde nasce? Que segredo ela esconde? De onde vem, esquisita essa dor que corrói? Dói na dor. No artefato sombrio que a vida prepara. Reage! Empruma-te. Encara! E afasta esta dor que só dói.


  
Lá vai o Pudor com sua bunda gigante em calcinha GG sem detalhes nenhuns. O cuidado excessivo pra não deixar marca do elástico cavado, de repente, bem nessas, atrair o olhar vagabundo do moço lascivo que queira se afogar, lambuzar, chafurdar. Lá vai o pudor, com os peitos durinhos guardados no bojo seguro e chaveado do bom sutiã. Sem deixar que os bicos safados se armem ligeiros. De repente, é bem nessas, que o moço lascivo de olhar vagabundo já chega faceiro querendo apertar, encarcar, futricar. Lá vai o pudor, no fim da ladeira com as mãos bem suadas, cansando de tanto esperar, desejar, delirar que um moço lascivo de olhar vagabundo encontre um motivo e queira se afogar, lambuzar, chafurdar, apertar, encarcar, futricar. 

sweet m.a.r.y



Mary Jane é ruiva e tem uma cicatriz no rosto que me encanta. Mary Jane é o primeiro nome da lista. Por mais que eu decida jogar alguém na frente, ela salta e não tem como competir. É isso. Não vou tentar mais garantir som à voz do esquecimento. Ela não se pronuncia quando se refere àqueles que amamos incondicionalmente. E agora que faz escuro dentro desse quarto, eu sei: o amor é o tempo de uma folha cair do galho até o chão, eterno e curto. São muitos os pensamentos que atravessam a minha cabeça, por vários motivos; posso citar apenas um deles: aconteceu um acidente. Transito entre o antes e o depois com a insistência de querer que tudo possa ainda ser evitado; mas não vai nunca poder se evitado, pois já aconteceu. Penso em Mary Jane e em como era bom o tempo em que éramos um para o outro. Ela está aborrecida comigo, aborrecida com o que eu me transformei. Eu sou muito pior que a cicatriz no rosto de Mary Jane. Mas não posso me concentrar nisso, pois vai doer mais, preciso evitar a dor. Embora ela esteja por perto, rondando. Não vou mexer. O crime de fugir daquilo que somos cobra sempre um preço alto. Eu não quis. Não quero. Mas agora sou obrigado a aceitar. Justo agora que tudo pode ficar pior. Este é o início da aprendizagem: sustentar a cabeça torna-se tarefa dificílima quando o corpo está em completo desconforto de si mesmo. Não vou gritar, não vou espernear. Aqui é proibido tudo o que não seja silêncio e paciência. 

terça-feira, 19 de março de 2013

origami

as duas mãos não seguram com firmeza o mundo
por ser redondo, talvez
e sem arestas a que agarrar

(espere, a banda está passando...
... pronto, passou)

o menino tem dezesseis anos e acredita que pode mudar o mundo
pedirei, então, que crie arestas nos cantos
para que ninguém se engane

achando que, por se tratar de um mundo redondo,
será fácil segurar; e passe muitos dias
encantando essa ideia de que - assim que possível
facilmente se levantará da cama

abrirá um pouco a cortina
caso seja um dia de sol,
ou pode também ser de chuva,
de vento, neblina, talvez até que caia uma nevasca,
saltar rápido e forte
pronto para a grande conquista

............................................
Ô,

você é tão triste, Damião
seja assim não
fique feliz, Damião

tinha um amor ainda agora
estava ali à vontade
deitado na grama
mascando matinho

com um tédio danado dos bons
armado no canto dos olhos
sem saber o que fazer da vida

e gastando a juventude no melhor de ser feliz
(está vendo isso crescendo dentro do coração?
pois, cuidado!
é um bicho que vai comendo
os pensamentos
mastigando
engolindo

e quando engasga
isso tudo
e cospe fora

o dia fica logo escuro
espanta, antes que perca a noção
de como amansar
apazígua
dá água
dá paz
guarida
sono
comida)

um buquê de flores
um poema dobrado numa folha de caderno

mas desde bem pequeno
entrando no tempo de existir sozinho
achou-se triste

foi

Ô, Damião
Fica assim não...