quinta-feira, 28 de março de 2013

gato branco na neve


Depois da noite escura, veio a Dúvida. E a dúvida usava luvas. Os pés da dúvida avançavam como se recuassem, porque havia uma onda que estourava sem ímpeto - ainda que fosse enorme. Olhei nos olhos da dúvida. A hesitação puxava o brilho dos olhos para um abismo infinito. Um parque de diversões vazio. Todos os brinquedos desligados. Quis mostrar que era um lago e não um túmulo. Quis aproximar, fazer ver, trazer para perto do mesmo modo como se faz com a criança que teme ver um passarinho machucado. Esqueci o corpo em volta. A luz solar e macia, esqueci-a. Estava diante da dúvida com interesse intenso. Entrei pelos olhos e fui percorrendo os corredores. Devagar para não acordar outros monstros antigos que haviam se acomodado em regiões que a memória temia visitar. Escutei sussurros. Estava lá. No último canto, no fundo do coração. Era uma dúvida juvenil e ao mesmo tempo antiga. Sorriu quando me avistou. Olá!
  


Parece que o Amor passeia em volta da minha casa munido de todos os instrumentos de comunicação criados para inventar distâncias. Parece que o amor trabalha in numa dessas bases petrolíferas, meio do mar. É índio de tribo antiga, sinais de fumaça: Onde está? Venha me ver! Cadê? Meu cabelo está tão curto, Rapunzel! Joga você! Parece que o amor tem compromissos importantíssimos pelo mundo e o mundo é infinito e não sobra um intervalo que seja para (nos andaimes da construção) trocarmos aquele pedaço de pão. Parece que o amor é tão feliz e deslumbrado que tem uma pressa enorme de ver as cores, ouvir os sons, provar do gosto e tocar batuques pra acordar multidões. Parece que o amor é louco que chegue logo o fim do mundo pra constatar: Eu não disse?! Olhe como é bonito!
[Mary Jane]

  

A Paciência é uma jovenzinha serelepe, gasta o dia todo a olhar pela janela e avisar os que estão dentro da casa: É vindo! Esperemos! As tranças soltas no vento, sapato envernizado, vê sol e vê a chuva, nuvens muitas. A paciência é leve e perfumada, tem os olhos claros e vivazes. Vive a espantar as moscas dos pensamentos sombrios que impedem que ela enxergue - a qualquer momento! - apontando lá na curva da rua um arremedo de sim! Uma certeza: a paciência tem memória fraca e esquece o tanto de passado que se arrastou até ali. Lembra um pouco o meninozinho que pede esmolas à porta do asilo. Mas é bem diferente. Não mira os olhos tristes dos velhos abandonados.


O Desespero é velho e gordo, arrasta sandálias pela casa à procura de uma extensão pra plugar mais uma tomada de um eletrônico novo. O desespero é úmido e pegajoso, limpa as mãos no pano sujo da pia e leva à boca comida que restou da noite passada. Uma convicção: o desespero não se admite ser feliz. O desespero parece um pouco a Hilda Hilst dos últimos dias. Mas é bem diferente. Não poetiza. E menos ainda enxerga Deus dentro da boca de um cão.



Esta viúva senil que vocês estão vendo é a Ansiedade , arruma-se todos os dias para sair apenas como o treinamento para o dia em que realmente sairá. Vasculha todo o armário na esperança doida de achar aquele exclusivo vestido que nunca será encontrado. A ansiedade demora a adormecer por ficar o tempo todo se levantando para conferir se todas as portas estão devidamente trancadas. E por fazer isso tantas vezes é que aos saltos de coração ela mesma vira a chave na fechadura livrando-a da tranca. A ansiedade é falsamente atenta diante de alguém que a aconselha, quer reagir de imediato - fugir dali e chocar-se contra o muro duro do mundo. A ansiedade não sabe nada do amor nem das cantigas de ninar. É burra burra burra e acha que está sempre certa. A ansiedade nem desconfia, mas está com seus dias contados.

O Ódio deixa as unhas crescerem para arranhar com força a pele dos próprios ombros. Enquanto conversa, durante um amigável chá, o ódio sente a dor vertendo das próprias feridas; concentrar-se nisso impede que ele esgane o pescoço do seu afável convidado. O ódio fala devagar para não engasgar. Junta um cuspe grosso dentro da boca, na gana interrompida de lançá-lo ao rosto de seu gentil interlocutor. O ódio é covarde. Masturba-se e ao jorro do gozo cai em prantos quebrando tudo o que vê diante de si. Ao confessar suas vinganças ao louco que lhe empresta o ouvido, aponta o dedo ameaçador e franze a boca sussurrando tudo o que fará contra seu suposto opositor assim que tiver oportunidade. O ódio é absolutamente incompatível com o amor, embora frenquentem os meus seres.


É possível ainda senti-lo, ele está aqui, próximo. Bem próximo. O Medo veio aqui hoje. O cheiro do medo é esverdeado. Sempre que ele está por perto as mãos fogem para junto do rosto. Colam-se às faces e os olhos se esbugalham espantados diante da sua presença. Á volta dele, os pés se perdem a andar sem destino. Não há água que amenize a sede do medo. Não há silêncio que sufoque a massa de vozes que se avolumam no centro oco dos pensamentos. O medo é preciso. Vale-se de uma única palavra e penetra o ínfimo ânus da palavra até que ela se dilacere e se ponha a supurar. Não posso com o medo. Ele monta feito cavalo morto às minhas costas mesmo perto do sono chegar e acende a lâmpada da insônia fartando-se em goles grandes de desespero líquido até que se rompa a tênue luz da manhã e tudo recomece. O medo não tem limites.


 A Fome, quando a ela nos apegamos, engorda em nós o desânimo. Como uma velha que fia inconstante, a fome modela o nada a partir do corpo revelando a morte que aguarda por dentro. Os olhos brancos da fome admiram fantasmas de luz que frequentam um mundo sem tempo e sem história. É de foice esmerada a mão bruta da fome, trabalha a cada corte as covas da forma; afunda as carnes e afina os veios em que o sangue possa correr vibrante. Diligente, penetra nos cantos mucosos e suga aloprada a água restante. É mofina, a fome. Osso duro osso: entorta, desidrata, mata – mas antes atinge o cerne da alma de onde a expressão firme brotava; e emudece até o tutano o gesto e a fala.


Eis que vem chegando a Desconfiança. Falem baixo. Pode ser que ela não goste de ouvir qualquer mínima piu. Tratem-na bem. Sem exageros que ela possa aferir daí algum artifício ou estratégia. Outro dia, a desconfiança, imaginem!, mandou pesar três vezes o quilo exato da compra. Olhou o papel, conferiu o endereço, arrumou os óculos, franziu a testa: nada a convencia de que era ali mesmo o lugar em que haviam marcado. Mas por que marcar ali?! Alguma coisa havia! Ela matutava. E lá no alto, uma palavra balança malandra no trapézio do juízo da desconfiança; eis que salta e cai estatelada na alva cara da descarada: Então era isso! Um coro maldito se põe a ecoar. Então foi por isso! Está explicado o porquê do entrevero! Vou tirar a limpo é agora mesmo. E sai derrubando parede arrumar confusão.



Rapaz velho estudado, graduado com diploma, o Orgulho. Ninguém vê. Só ele em segredo admira os troféus guardados embaixo da pele enrugada. A vida inteira aguarda a grande e merecida chance. Teve uma vez um amor, a moça no salto da inocência perguntou se ele não achava estranho o pouco caso que os da capital faziam aos que vinham do interior. O orgulho afundou as mãos no bolso das calças e encostou com os dedos suados o plástico verde do documento. Nunca mais quis saber de um dia querer mais sair com a moça. Não serve pra mim. Muito da enfeitada. Uma vez, uma chuva daquelas da braba! O amigo passou e deu com a buzina: Está indo pra onde? Estou bem, gosto de chuva – respondeu o orgulho, as botas todas borradas de barro. Coitado!

  
A Dor dói. Onde dói? Onde dói? A dor dói. Como dói. A dor dói tanto dói que eu me espanto de encanto. É aqui que a dor dói. É aqui! Não percebe?! Ela dói. E se encurva todinha. Se arrasta, se assusta, se esconde, se encobre. Contorcida em si mesma, chorosa e convulsa. Ela dói! Está doendo. É em mim. Não repara? Em meu corpo, tadinho! Ai, ai, ai! Como dói. Liga a mãe. Liga o pai. Corre ao médico. Ai, me acode, doutor! É agora que eu morro. Dói tudo. Olha aqui se é febre. Dá um nome. Batiza. Atenção, todo mundo: é minha dor. Ai, que dói. Da pontinha do dedo ao inverso da orelha. Dói cabelo, pescoço, dói olhar. Só de olhar. Dói. Dói. Dói. Essa dor, onde nasce? Que segredo ela esconde? De onde vem, esquisita essa dor que corrói? Dói na dor. No artefato sombrio que a vida prepara. Reage! Empruma-te. Encara! E afasta esta dor que só dói.


  
Lá vai o Pudor com sua bunda gigante em calcinha GG sem detalhes nenhuns. O cuidado excessivo pra não deixar marca do elástico cavado, de repente, bem nessas, atrair o olhar vagabundo do moço lascivo que queira se afogar, lambuzar, chafurdar. Lá vai o pudor, com os peitos durinhos guardados no bojo seguro e chaveado do bom sutiã. Sem deixar que os bicos safados se armem ligeiros. De repente, é bem nessas, que o moço lascivo de olhar vagabundo já chega faceiro querendo apertar, encarcar, futricar. Lá vai o pudor, no fim da ladeira com as mãos bem suadas, cansando de tanto esperar, desejar, delirar que um moço lascivo de olhar vagabundo encontre um motivo e queira se afogar, lambuzar, chafurdar, apertar, encarcar, futricar. 

sweet m.a.r.y



Mary Jane é ruiva e tem uma cicatriz no rosto que me encanta. Mary Jane é o primeiro nome da lista. Por mais que eu decida jogar alguém na frente, ela salta e não tem como competir. É isso. Não vou tentar mais garantir som à voz do esquecimento. Ela não se pronuncia quando se refere àqueles que amamos incondicionalmente. E agora que faz escuro dentro desse quarto, eu sei: o amor é o tempo de uma folha cair do galho até o chão, eterno e curto. São muitos os pensamentos que atravessam a minha cabeça, por vários motivos; posso citar apenas um deles: aconteceu um acidente. Transito entre o antes e o depois com a insistência de querer que tudo possa ainda ser evitado; mas não vai nunca poder se evitado, pois já aconteceu. Penso em Mary Jane e em como era bom o tempo em que éramos um para o outro. Ela está aborrecida comigo, aborrecida com o que eu me transformei. Eu sou muito pior que a cicatriz no rosto de Mary Jane. Mas não posso me concentrar nisso, pois vai doer mais, preciso evitar a dor. Embora ela esteja por perto, rondando. Não vou mexer. O crime de fugir daquilo que somos cobra sempre um preço alto. Eu não quis. Não quero. Mas agora sou obrigado a aceitar. Justo agora que tudo pode ficar pior. Este é o início da aprendizagem: sustentar a cabeça torna-se tarefa dificílima quando o corpo está em completo desconforto de si mesmo. Não vou gritar, não vou espernear. Aqui é proibido tudo o que não seja silêncio e paciência.