sexta-feira, 28 de junho de 2013

ensaio de orquestra: anotações ligeiras para o discurso do dia do fim do mundo






e quais são as chances de tudo correr bem?
eu sempre gostei muito da vida, da minha vida, sempre fui um cara pra frente, entendeu?
(esse aqui é bom? nunca vi esse)
e de repente sofri uma mutilação, eu que nunca tive medo de nada,
de nada
de nada
depois fiquei sem a visão, perdi completamente a visão, eu sou mono (mono o quê?) monocular, alguma coisa, eu usava muito a visão periférica, entende? fui pra Paris, fiz cinema em Paris, fotografia, tudo artes que estão relacionadas à visão,
mas você não devia ter interrompido assim, bruscamente, isso é um baque,
eu quase ficava louco,
vá deixando aos poucos,
parei, e comecei a enlouquecer, me dava uma ansiedade louca,
não podia ter parado assim,
medo de nada, nunca tive, nada
de nada
de nada
(esse eu já vi, adoro esse diretor, muito bom, acho que vou levar esse)
e você?
eu não gostei muito do documentário do W.B. Achei que ele estava velho demais, decadente, com aquele esgar involuntário nos cantos da boca, não sei se ia me dando uma pena ou um medo de ficar daquele jeito, igual, e ter que ser apresentado publicamente daquele jeito, dizendo as mesmas coisas, a voz dele muito amarga
não, não tenha medo disso, você jamais será uma gota do álcool ingerido por W.B. somado tudo o que ele bebeu ao longo de toda a vida, jamais, jamais,

véspera: o incendiário saiu para comprar fósforos
pode avaliar como as coisas estejam agora?



sms: estou passando aí, ele disse que não vai, o médico proibiu ele de tudo

esta é a casa, veja,
antes que mude tudo
está bacana aqui,
parece vc...


(não quero mais escrever)
somente respire, devagar, respire devagar que os seus pensamentos ficam também mais vagarosos,
é a mudança de tempo, e aí complica tudo,
hoje de manhã eu estava seriamente pensando em ir fazer o exercício junto com os outros velhos, mas não fui, acordei indisposta, e ontem também não fui dar aula de português pra menina (mas adianto que ela está aprendendo bem - a mãe também tem feito aulas, e é linda a alegria que ela expressa por estar aprendendo frases ridículas do tipo:

on tchi fo cê nas éu
é u
nas i
ê i
taiw an

e dispara a sorrir disparatadamente como se o coração dela jorrasse felicidade pelos poros

(não quero mais escrever, é inútil)
o que você sente ao acordar de manhã?
tem um resto de culpa da noite anterior,
,

não escreva!
a literatura distorce tudo

por ter esperado,
compare a literatura, a boa literatura, ela é como uma boa composição, nada sobra, existe luz e espaço, janelas abertas por onde um pássaro pode entrar, desenvolver um pequeno ensaio de voo e sair como se nenhum obstáculo o impedisse,
céu

(não quer mais, percebe que está errado, desarrumado, como um cabelo na sopa
um cabelo surpreendido dentro da sopa deliciosa, e aquele olhar de desapontamento

- não.


de constrangimento, desolação,
tristeza de achar que deus fez isso para zombar)

você diz sensações físicas?
(acordou de mal humor,
e avisou, botou uma placa na frente da porta,

CUIDADO: HOJE EU ACORDEI DE MAU HUMOR)

e justo no dia em que ia receber a visita da menina que fabrica flores
ela tinha adiantado que passaria por lá, logo de manhã,
os dois iriam ensaiar aquela partitura em que um pássaro entra numa sala
iluminada e espaçosa,
desenvolve um pequeno voo
 e sai

 como se

e por quê?
será que tem a ver com indigestão, noite mal dormida, os dias
ininterruptamente nublados?
aquele comentário estúpido da senhora dizendo que se ele fosse se apresentar teria que no mínimo amarrar esse cabelo,


desculpe, não foi isso que ela quis dizer
você não ficou chateado, ficou?

o que foi isso no seu olho?



espaços limitados


existem alguns lugares que costumaM determinar que tipo de comportamento será desenvolvido ali dentro

um motel, por exemplo
(há quem goste. e pague para isso)
os únicos de que eu gosto são aqueles que ficam na estrada com uma placa de

BATES MOTEL

é decididamente constrangedor ir a um lugar desses e não se comportar conforme o que pede o lugar
mas não tente fazer um esforço enorme

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as moças trabalham lá há muito tempo, algumas. você chega, pega uma senha, sinal que você não tomou café da manhã em casa, você é um desses tipos que não tomam café da manhã em casa, resolve tudo na rua, e a partir de então já fica clara a sua incompetência, fica explícita a sua inabilidade para habitar um espaço, morar,
você é um daqueles tipos que quer sair de casa, quase sempre, como se dentro de sua casa houvesse pistas demais sobre sua incompetência, sua inabilidade existencial, e você se aplica em arrumar rapidamente o que possa ser arrumar (existe um vazio dentro da casa - o vazio de uma presença - uma presença que sabia - que sabia - sabia - existir dentro da casa e dar a ela um movimento gracioso - talvez seja justamente esse vazio o que obriga você a sair de casa - expulsa-se de casa, esse imenso vazio - e salta - como um gato - um salto para fora, para o lado de fora onde existe um espaço todo anônimo, nenhuma acusação mais direta), e sai,

ao caminhar, descobre, enquanto o sinal não abre, que o porteiro do hotel da frente
um hotel elegante
costuma praticar uma sutil vingança para com aqueles que o obrigam a passar o dia inteiro abrindo e fechando portas,
sacar os dedos no nariz porcamente
e emporcalhar porcamente a maçaneta de um jeito porco
porcamente

há coisas obscenas espalhadas por todos os lados, o mundo é covardemente violento

um casal sai do hotel,
o moço, muito bem vestido, adianta-se e

abre a porta para que sua elegante dama saia para o saguão do hotel e os dois possam passear pela cidade nessa bonita manhã de um sol que acaba de aparecer

substrato que o acompanha até a padaria, como um desses cachorros perdidos que talvez farejem no andarilho um traço de cheiro do antigo dono e persiste o caminho até - talvez - divisá-lo numa esquina: o pensamento vai com ele