domingo, 7 de julho de 2013

depois de depois de amanhã

M. notou pequenas imperfeições em várias partes do corpo. O olho era uma câmera rápida e precisa - as rugas ao lado da boca se estendiam  como galhos pensos com o peso dos frutos, a gravidez avançada, a água derramando dos jarros pela distração do menino. 

Elaborou cinco coisas que ainda conseguiria fazer bem, apesar da idade:


Era capaz de enlouquecer com o mesmo vigor de antes, mas em consequência lhe advinha um cansaço absurdo e a sensação de que não valera a pena tanta loucura elaborada bruscamente em noites insones, passos incertos, respiração ofegante. Em represália, agarrava-se aos livros sagrados (quase era possível dizer "sangrados"). Lia trechos carregados de sabedoria que não reverberavam no oco infinito do seu coração. Interrompia o esforço em angariar alguma fé, com aquela vaga ideia de comprar uma passagem, mudar de cidade, de amigos, de roupas, cabelo, falar sobre trivialidades que excluíssem por completo a literatura.

- Mamãe perdeu três quilos, desde que morreu
- Ficou lindo, * é uma artista, como conseguiu tamanha perfeição?
- Mutações, transformações, genética, tecnologia avançada

tirar os pelos do corpo, alongar aqueles músculos atrofiados pela falta total de exercícios, abrir mais, outras expectativas, conversar com pessoas mais jovens e compreender que é tudo uma roda, um arco, um ciclo, 

Os álbuns públicos me causam um certo enjoo.
A você sim? A mim também. E *, tem tido alguma notícia?
Ele conseguiu o emprego

Anotou os projetos a serem realizados em menos de dois anos. 

(pessoas gordas, definitivamente, são mais felizes, as que são felizes, claro
ela está tão gorda e perdeu completamente aquele ar juvenil, a cara está inchada, a pele também não tem nenhum brilho, o cabelo desarrumado, - enfim, uma lista infinita de tudo o que não deve aparecer nos álbuns públicos, mas ainda gosta de muita coisa, e fala pelos cotovelos, mas pratica meditação e yoga regularmente)

27 anos e um pânico louco de engordar demais e ficar igual a mãe 
Mas aos 27 anos ainda se pode reverter muita coisa. A indústria da saúde & beleza cresce dia após dia, com truques impressionantes para se parecer mais jovem e saudável. 

Inevitável não lembrar de Morte em Veneza.

Você sabia que *. agora tem aplicado botox naquele casal de amigos que, gentilmente, acompanharam o drama que ela viveu depois da separação com *?
Ficou mal, realmente mal, começou a fazer análise com um excelente especialista, indicado por *, que logo lhe receitou uma dosagem cavalar de antidepressivos. No começo, foi dificílimo, mas agora está tão bem que já se prepara para participar de provas esportivas puxadíssimas. Resistiu, superou. 

"Superação", ela me disse. Ainda na metade do tratamento. 
E naquele mesmo lugar em que tanta coisa nos tinha acontecido, desandou a falar de todo o drama, como havia sido, detalhe por detalhe, com registro de fotos e vídeos de cada acontecimento especial que resumia em várias mídias o que representou toda aquela história. E me contou como, agora, quer dizer, naquele momento, estava pronta pra outra, "página virada", "vida que segue", 

Não acreditei, óbvio. 
Mas continuava bonita. Mais ainda do que quando eu a conheci. Principalmente porque a beleza agora sustentava um peso de grave tristeza - o que nos desperta sempre uma revolta pessoal contra os deuses por ter ferido de dor um belo rosto. Por ter perturbado os dias felizes e encantadores que viveu até então.

Havia, de uma hora para outra, se tornado uma pessoa normal, sujeita aos revezes do tempo. Impossível tocar aquele rosto, conspurcar aquele momento. Seria covardia. E a covardia é algo tão triste e feio que converte qualquer gesto em algo grotesco. 

O efeito, * me disse, consiste em aplicar algumas doses entre as linhas mais marcadas da testa e ao lado dos olhos. Funciona, sabia? Se quiser, pode tentar. 
Você vai fazer em você?
Óbvio que não. 

Mas retornam. E a cada seis meses nova dose deve ser aplicada.
Não retornam. Estão ali. Aguardantes. Como a cobra espera o pássaro sair para o primeiro voo, até a queda. E o bote. 
Não seja trágica.  
Eu sou trágica. 

* expunha todo o procedimento com uma compreensão de especialista. As unhas pintadas de vermelho, segurando um cigarro de filtro branco, um verdadeiro profeta divulgando as boas novas do nosso tempo. Os muitos artifícios para roubar o fogo dos deuses e evitar a velhice e a consequente morte em vida que essa etapa confere a todos os enrugados, encurvados, sem viço, sem vida. Os que, definitivamente, devem ficar fora dos álbuns públicos.  

* não transita por essa vida alheia, mantém sua privacidade, trabalha feito uma louca e guarda uma boa reserva para prazeres sofisticados. Especialmente viagens. Gosta de se hospedar em hotéis caríssimos, de onde sai munida de óculos escuros e roupas de corte impecável para um passeio por bons restaurantes e visita a monumentos turísticos menos procurados, coisa de quem leu bem o almanaque. O que só comprova que não é possível manter por muito tempo a tristeza quando se é jovem e endinheirada. Mesmo assim, o baque foi dos grandes, e * ainda precisa se recuperar bem.  

Douglas, o nome do namorado dele é Douglas. Moram juntos a dois anos, colecionam antiguidades e criam um weimaraner. A cada seis meses ele recebe aplicações de botox nas marcas mais profundas do rosto. Douglas assiste a tudo atento, acalentando o cachorro no colo. 

fotos de:
antes e depois

* fica feliz com o resultado, 
* fica feliz com o resultado, 
e todos ficam felizes com o resultado, 


Mas a gente sabe o quanto é tudo provisório e que é preciso, urgente, cultivar algum jardim, 
Só dessa maneira as mãos aprenderão a tocar e reconhecer, mesmo de olhos vendados, a presença viva do amor.

Mas a gente sabe o quanto é impossível cultivar por muito tempo um jardim que renda frutos viçosos e duradouros. E mais ainda, a gente sabe que a presença do amor é tão provisória quanto as aplicações que * faz a cada seis meses. E que apenas os covardes ou os verdadeiros santos conseguem se manter fora da roda vertiginosa dos desejos incontroláveis. 

Muitos são os refúgios. Nenhum, no entanto, capaz de abafar os rumores do mundo.