domingo, 1 de dezembro de 2013

a uma passante...

Prelúdio:

Deus teve pressa ao criar o mundo. Sete dias era muito pouco tempo, mas institucionalizou-se e o discurso funcionou como deveria – sustentando a sequência de luz, água, seres e as sombras, quando, enfim, descansou e não quis mais saber da criação. Deixando somente uma plaquinha ao lado da árvore do “Não mexam aqui, senão vocês vão se arrepender”. Claro. Era só chegar ali nos limites da construção e observar que o resto todo ainda era abismo. Lugar onde as maçãs caíam podres e sem eco, pois era tudo queda. Nenhum fim. Nenhuma finalidade. Porque até Deus tinha tédio. O tédio é que fez com que tudo fosse criado. Um tédio de domingo, oco e recorrente, como dentro de algumas cavernas, a cantiga insistente do pingo d´água na estalactite. Batendo, sempre a mesma nota da lágrima que se renova sem saber que é outra. E furando a pedra num ponto inútil para sustentar o provérbio: “...tanto bate até que fura.”
O lado do abismo, esse vazio imenso, é de onde se originam os pensamentos. Dentro da mente reside o modelo exato dessa abertura infinita. As providências do tempo, movendo sem fim a corda na direção vertical invertida: tempo é pra cima. Por isso o desejo que a planta tem de crescer até ser árvore com seus galhos em prece. As coisas são ao infinito pra cima, saindo, despregando-se do chão, em torno tudo ar.

E tudo isso porque você estava do outro lado da rua e, na direção contrária a sua, você avistou a moça sem uma mão

Imagine que existe uma sala anterior a esta em que o corpo está agora. Nesse outro lugar, como convém, há uma fila que se estende ao último e mais e mais vai se enchendo, sem que se possa enxergar. Um ponto além, adiante, sem fim. Para quem está lá na frente, inútil tentar avistar o último da fila; e quem acaba de chegar, um esmorecimento, um desânimo por não divisar quem está na dianteira. Aqui estão suas roupas de viver. Uma para cada fase, percebe?! Essa aqui, você rasgará bem no joelho esquerdo, numa dia de chuva, você tentando dominar sua bicicleta azul: e não será a primeira queda – outras já houve, outras ainda por vir. Mas a roupa de infância dará conta dessa fase sem que você a destrua. Você vai olhar com muita atenção o lado de dentro, de onde jorra um sangue vermelho. Vai ser bonito. Vai doer também. Nesse momento, o corpo está querendo chamar sua atenção para o quanto de fragilidade e urgência existe nessa estrutura. Mas você vai se distrair novamente e vai disputar algumas brigas, vai se sentir extremamente vaidoso em ser o melhor em alguma coisa que consideram importante, sua habilidade, por exemplo, em ter uma boa mira para acertar as bolinhas de vidro dos outros e lançá-las para fora do jogo. Isso vai trazer uma alegria tão boa. Você não vai nem querer tomar banho antes de dormir, para que a sensação do dia não lhe escape. Os gritos dos outros meninos torcendo por você e a certeza de que você é realmente bom nisso, nessa coisa de mirar e jogar. E muitas manhãs virão, com essa mesma roupa da infância, alguns meninos vão mudar de rua, algumas ruas vão, inclusive, desaparecer diante dos seus olhos, o chão vai ser coberto, casas vão ser construídas, ali onde existia o lugar em que você era o campeão. E também, isso você não vai notar imediatamente, uma outra roupa vai substituir aquela da infância. Uma roupa diferente. Em construção dentro de você, não virá pronta, como pareceu vir a anterior. Você vai perceber ela se construindo em você, porque dessa vez você vai estar bem atento para o fato de que as coisas mudam. Principalmente porque você já viu acontecer com o seu cachorro, quando ele morreu depois de ter engolido aquele tipo de veneno que jogaram no jardim. Estava lá. Não está mais lá. E você vai começar a olhar desconfiado demais. Então, é quando chegarão as palavras. Que erro! Se você, por exemplo, não desse atenção, a distração continuaria empurrando você para roupas maiores, que ajustassem corpo e pensamentos. Mas nesse momento, nesse exato momento, você prestou atenção e viu: as coisas mudam. O que poderia ser bom. Mas o seu jeito de se apegar ao que está aí é que faz você insistir e ficar. E pensar demais a respeito. Estava pensando demais a respeito quando um dia desses, atravessando uma rua, você estava do outro lado da rua e você avistou a moça sem um braço.

Nesse momento, o tempo parou

Ok, há muito em que se pensar. E também era hora de decidir não tentar agradar demais  – essa coisa de pensar o que o outro estava pensando sobre o que estava acontecendo em vez de ver o que realmente estava acontecendo, essa coisa tinha que acabar. Foi quando justamente ali, no lado oposto da rua, porque é certo que o lado certo da rua seria onde ela estava: a moça sem uma mão e um pedaço do braço surgiu. Que milagroso cruzamento de tempo e espaço foi aquele que fez com que o seu corpo, essa roupinha que você tem vestido ultimamente, estivesse exatamente ali diante dessa evidência viva da coragem de existir? Uma moça vestida de preto, mas não era luto e não parecia triste. O barulho da rua, os carros indo e vindo, o olhar atento para o outro lado do cruzamento. Ela segurava uma bolsa preta com o coto do braço enquanto que o outro braço inteiro nu formava o contorno exato da figura induplicada. Você quer olhar? Olhe. Não deixe nunca de olhar pois é pra isso que as coisas e as pessoas estão aí, para serem olhadas. Mas, por favor, saiba olhar; para que ela não pense que você está olhando somente para aquele pedaço de braço e para a mão que não estão ali. Não, não! Pelo contrário! Você diria e tentaria explicar para si mesmo a emoção que sentiu em ver ali diante de si esse espetáculo irrecuperável de leveza e certeza e arte diante dos seus olhos na rua: a moça sem adjetivos, pois o fim daquele braço era justamente o abismo de Deus. Depois da árvore do conhecimento, ali adiante, onde supostamente tudo deveria ser cercado de perfeição, o final distorcido, a ausência, essa queda. Deus não desenhou todo o paraíso, somente o caminho até ele. E o caminho era esse braço que se acabava antes da mão.


Um segundo inteiro de eternidade, mas saiba-se um imbecil completo...


As coisas inúteis que os seus olhos já enxergaram e as outras coisas, tudo isso, formando quem você é. E mesmo você diante do espelho observando com um desespero quieto o modo como o tempo vai devorando lenta e sarcasticamente sua pele, tirando a cor e o brilho de vida que há pouco estava ali. Seu egoísmo de querer-se eterno entre todos os seres, por supor, veja que ingênuo é você, que faz muita falta para o mundo, esse seu humor, essa sua irreverência. Distraia-se, vá ali. Colha uma flor no jardim. Mas você não tem jardim. Então é melhor sair um pouco de casa para que o tempo não venha com tudo e domine e paralise. Corra, ande, vá. Na rua. No cruzamento. Tão bela, tão jovem. Ah, se Deus fosse generoso e desse a você, um imbecil poético, apenas um momento com ela. E o que ele faz é somente empurrar você para dentro do abismo, lá dentro onde está a mão direita da moça e o pedaço do braço que falta. Vamos, imbecil! Complete essa imagem, já que para você não está bom assim como está! Vai! Tente fazer melhor do que você fez. Tome aqui esse lápis. Rabisque o restante. Enquanto que ela, do outro lado da rua, não vê você. Pois ela quer somente atravessar a rua o mais rápido possível e resolver uma questão qualquer para ir para outro lugar. O corpo dela anda com passos firmes. O seu corpo está atordoado, segurando com os dois braços e mãos do seu desejo a parte faltante da moça. Você amaria eternamente e a vida inteira aquele contorno incompleto, pois, claro, aí nessa parte que falta é que está a resposta para todas as suas questões. A mão é o resto do mundo. Solto, difuso, imperfeito. Você não quer olhar tanto, olha apenas por um segundo, um mínimo segundo. E o seu olhar sustenta, por esse breve tempo, toda uma estrutura, um relâmpago e logo mais a noite. As coisas inacabadas, inconclusas. O fuso incerto das horas. Você quer morrer exatamente ali, naquele pífio instante, por ter avistado a moça e nunca mais, jamais, poder vê-la novamente. Pois você percebe que aquilo é diferente de tudo. É diferente pela ousadia da outra parte que está lá. Há muitas formas no mundo, muitos modelos e tipos e suas expressões e tudo. Aquilo que os olhos podem ver e não se embasbacar é porque já existe em duplicata. Mas não a moça. Ela é a perfeição incompleta. Algo de tirar o fôlego. O que fazer, depois de ter avistado o paraíso? O que fazer, depois de saber que esse paraíso é incompleto? Amar a parte que falta no final daquele braço e desprezar todo o resto? A moça que estava ali, forte, altiva, incorruptível, pelo contrário, não quer mais a mão que falta. A moça que estava ali não desprezou todo o resto, pois se algo mínimo falta, o que sobra será apenas o resto. Antes, a moça construiu um elogio à parte existente. Ergueu uma construção imensa, imponderável de corpo e habitou dentre dele uma alma. E como você é pequeno do outro lado da rua. Você sente vontade de chorar. Você pensa, talvez, naquele pai tão imbecil quanto você, que deitou sobre o corpo da mãe e explodiu sem força o sêmen dentro do corpo dignamente deitado da mãe, talvez sem prazer, talvez porque, talvez, ... por quê? E você, por um instante, do outro lado da rua. Este é o filho. Ele é tão bonito. Ele vai viver. Ele vai existir e se chamará, certamente, Antônio, João, Pedro. Vamos festejar, vamos comemorar! Os deuses, lá de cima, por um instante, saíram do encosto de seus tronos e apontaram o ouvido em direção a sua casa, e depois deram uma olhada mais atenta, tentando ver quem era você que tantos festejaram. Era você! Nasceu mais um. Vai viver. Um breve instante. E depois crescerá e verá as coisas como elas realmente são. Então, porque nós não, pensaram os deuses, fazemos com que ele, em determinado dia e em determinado cruzamento, aviste, do outro lado da rua, a moça. A moça ali do outro lado da rua. É para isso que você existe. Foi só por isso que você chegou até aqui, para avistar a eternidade nesse breve instante. E depois que ela se for, você vai perceber que, de agora em diante, será sempre aquela mão faltante que puxará você do abismo e jogará você de novo para o corpo da vida, atento, firme, completo e inútil. Pronto para mais um jogo.