sábado, 27 de setembro de 2014

um pequeno assassinato

no intervalo entre uma aula e outra,
encontrei o escritor que agora é professor
ele é professor para ganhar a vida
pois não se ganha a vida sendo escritor

melhor explicando:
a vida que se ganha sendo escritor
não é a mesma vida que se ganha sendo outra coisa
um médico, um diplomata, um herdeiro
assim sendo, é possível até ser escritor

médicos leem livros
no intervalo entre uma e outra cirurgia
e podem até escrever um livro

diplomatas leem livros
no intervalo entre uma e outra viagem
e podem até escrever um livro

herdeiros, alguns, de tão entediados, leem muito
os clássicos imortais ou, descaradamente, bestsellers do momento
e por isso podem até escrever um livro ou mais

Era bem isso que estava escrito no olhar do escritor
que agora é professor
naquele intervalo entre uma aula e outra
quando ele me disse: "não posso escrever mais,
preciso ganhar a vida"




segunda-feira, 15 de setembro de 2014

perceba

é cedo ainda, de manhã
agora você acorda e percebe o corpo
mais pesado do que nunca
uma vontade maior em querer não

querer não bem mais forte que
querer sim

e também você não tem um cachorro
pessoas felizes têm cachorro
está confirmado

olha a agenda da semana
mil compromissos
como eles vieram parar ali sem você se dar por isso?

ah, você não se deu por isso
é isso!



terça-feira, 2 de setembro de 2014

o prosador vai à padaria

Hoje, às quatro da tarde
faltou pão na casa do autor
Ele estava sozinho
e quis, em sua solidão,
comer um pão com mortadela
Aquela vontade de ser simples novamente
Sair de casa a pé mesmo
Foi indo ali por aquelas ruas
que ele tanto mapeia em sua ficção
Talvez até assobiasse
Sentiu-se estranho - um personagem
Seria que o olhavam?
Mas não era ele ninguém tão assim
propenso a olhares e gritos fanáticos
Era só um autor de ficção
- premiado, laureado, traduzido
(justiça seja feita!)
Mas daí a reconhecerem-no na rua
Lá isso era querer-se demais
para coisa tão banal feito a prosa ficcional
Inda mais que estava vivo
E em assim estando, não relevava a autoria
Tomarem-no para ídolo
Não. Imagina. Logo ele...
Até riu-se...
Eram questões que lhe passavam
na lenta e trabalhada passada
E eis que chega à padaria
Pede o pão no mesmo tom
que o senhor de meia idade a sua frente
Sorve proustianamente
o cheiro quente da massa
E segue o caminho de volta à casa
Estamos sempre voltando pra casa
Anônimo e estupefacto
Sabendo a exata medida de valor
que uma boa prosa e nada têm,

no Brasil