domingo, 5 de outubro de 2014

fantasma

Quando decidiu pelo não
Pesar os prós e os contras
Não se fez questão

Andou pela casa em silêncio
Já era um fantasma

Abraçou a mãe e os irmãos em silêncio
Já era um fantasma

Chorou os amores
Revisitou-os todos
Olhou o gato
E mais uma vez o invejou
E uns tantos livros,
Alguns ali, nunca lidos
Nada importava
Já era um fantasma

O tempo inerte
que engendra bolor
A tudo se adere
à face de um dente,
o amargo da língua
à remela dos olhos
o pretume que habita
unhas e rugas de alguns mendigos
sentados quietos em dias de sol

Cerrou lentamente os olhos
No gesto final de acalentar
Tristeza de rio incerto
Na lágrima amarga
jamais desaguada

Aliviou saber
Que o esforço de suas mãos
Forjavam um ritual
De primeira última vez

Entre um passo e outro
Deu-se com o espelho
Mirou-se estranho
E ainda quis avaliar as perdas
Mas tudo era perda
E perder-se de vez  seria abandonar
Uma casa antiga sem acesso ao sol
Onde as coisas úmidas achegam-se
À desolação dos mínimos objetos


Ele não havia ninguém mais em si
O corpo era somente uma sombra de carne
Preparando o despejo
A um exato lugar fora do tempo
E das coisas visíveis

um mundo mudo não muda

Uma nova categoria se constrói
A dos reagentes

Os que reagem
São violentos
Praticam também a violência
E quem vai reagir
Depois que todos reagirem violentamente?
Como reagir a reação?

Que silencio é esse que durante tanto tempo
Espera o momento exato da reação?

Que silêncio é esse que engendra
com dor imensa
uma reação?

E então depois de vencido o prazo
Grita violentamente
Exigindo que torturem, apedrejem, destrocem e executem
Aquele que primeiro gritou
E torturou e apedrejou e destroçou e executou

Todo silêncio forja dentro de si
O gesto e a palavra exata
que irá romper a casca

A costura da longa espera
É feita de desesperos