sábado, 5 de março de 2016

O que temos para o momento




"Desculpa não entendi. Sobre o que mesmo você estava falando?" Eu perguntei e ela me disse:
- Deixa pra lá. Não tem importância mesmo.
Eu tive que levantar para virar o disco e estava prestando atenção no que fazia. Ultimamente eu estava tentando, pelo menos tentando, prestar atenção no que faço. Uma coisa de cada vez. Deixa pra lá, não tem importância mesmo.E é quando a gente fica segurando uma frase na mão; como quando a gente tem um cigarro na mão e está ouvindo alguém dizer uma coisa importante ou ouvindo uma notícia importante e esquece de bater as cinzas. Uma coisa meio sem sincronia. Fiquei com a frase na mão. E era melhor que eu permanecesse em silêncio porque se falasse alguma coisa do tipo "Ah, por favor, me diga o que você disse. Eu estou escutando agora. Vamos, diga.", se eu dissesse isso, é claro que ela não ia me dizer mais nada. O que eu podia fazer, portanto, era falar sobre outra coisa. Começar um outro assunto, pra evitar, sabe, esse tipo de coisa, esse tipo de, vamos dizer, desentendimento. Eu estava com muita vontade de estabelecer uma comunicação. Todo mundo sabe o quanto é difícil isso de tentar estabelecer novamente o ritmo da frase que foi quebrada. E aí mudei de assunto. "Sabe que, às vezes, quando estou escutando alguém, sou atingida por um ponto de instabilidade que me faz perder a atenção". É, usei essa expressão. "Por exemplo, deixa eu me explicar melhor, uma mancha vermelha no olho, esse tipo de coisa que eu chamo de ponto de instabilidade. Pois então, quando eu identifico isso, esse tal ponto de instabilidade, eu passo a me concentrar nisso e não consigo mais prestar atenção no que estava ouvindo porque os meus pensamentos derivam pra esse outro lugar". E ela começou a alisar o pelo do gato como se só existisse no mundo três coisas: ela, o gato e sua vontade alisar o pelo do gato. Aquilo pra mim era um pequeno espetáculo. Ela, o gato e a vontade que ela estava de alisar o gato formaram um quadro perfeito e fiquei um pouco em silêncio. Eu não queria interferir nisso. Sei o quanto sou desastrada e o quanto posso interferir nesses quadros de perfeição em movimento que se formam diante do meu olhar. Não quis interferir. Mas é que ela ergueu os olhos e me perguntou: "O que você achou da peça?". O gato escapou das mãos dela e foi ser ele mesmo num outro canto da casa. Gatos não gostam de dividir atenção. "Gostei muito. Achei genial. E você?" Mas eu não estava nem aí pra resposta. Ela não gosta de teatro, eu sei. Ela fica desconfortável diante de pessoas que estão diante dela fingindo que não são elas mesmas e querendo que ela acredite nisso. Mas esperei. Esperei o que ela ia me dizer. E como ela demorou mais tempo do que minha ansiedade poderia suportar, fiz a besteira de antecipar a resposta dela: "Você não gostou?" Ah, isso foi um prato cheio pra ela me olhar com aquele olho de quem está querendo dizer: "Você é muito ansiosa, né?" Mas foi só um olhar. Só um olhar, que eu devolvi também com outro olhar do tipo: "Puxa, se você soubesse que a gente está perdendo tempo nesse lance de ficar falando sobre coisas, sobre peças, sobre qualquer coisa. A gente não deveria falar sobre nada. As palavras é o que existe de mais sufocante. Vamos ficar... um pouco em silêncio. Eu quero ficar um pouco em silêncio." Em vez disso, em vez de perceber o que meu olhar dizia, ela continuou:
- Os atores são ótimos. Mas eu não posso falar muito porque eu não entendo de teatro. Só acho que a peça não tem unidade nenhuma. São colagens com muitos clichês.
O gato olhou pra ela como se tivesse entendido melhor do que eu o que ela tinha acabado de dizer. Percebi isso e fiquei me achando muito incompetente para me comunicar com ela. Dez a zero pro gato. Quase que odiei o gato e o complô que os dois estavam formando ali contra mim. Mas era o gato dela. E estava na vida dela há muito mais tempo que eu. Na verdade, eu tinha acabado de chegar. E era delicado isso. Essa coisa de acabar de chegar na vida de alguém. A gente não recebe um roteiro. Já aconteceu tanta coisa. Porra, eu só queria que passasse logo essa parte toda de não saber o que fazer e essas palavras todas. Bom, eu gostei da peça. E não podia voltar atrás e dizer que eu não tinha gostado da peça. Seria ... muita covardia. Não queria que ela me achasse covarde. Mesmo que eu fosse covarde. Talvez até o gato tenha notado minha fragilidade. Então, só me restava partir pra briga. "Saia dessa de buscar começo, meio e fim. Colagem. É o que temos para o momento. Você é que monta a porra toda." O gato saltou do tapete para o sofá e ficou sentado fixando os olhos diretamente pra mim. Estávamos sentadas no tapete, e a visão que eu tinha era bem engraçada porque era como se o gato estivesse ao lado do ombro esquerdo dela pronto pra cochichar como um pequeno diabo as próximas frases que ela tinha pra me dizer. Ela se sentiu encorajada a continuar.
- Eu li O jogo da amarelinha. E tem unidade. 
"Sim. Muita." Quem era eu pra discordar do que ela estava dizendo. E mais ainda, quem era eu pra discordar do Julio Cortazar, um dos meus autores preferidos. Isso só podia ter sido ideia do gato. Golpe baixo. Mas eu não estava disposta a desistir, se ela continuasse. E ela continuou.
- Eu li Obra aberta, do Eco.
Ah, então é por aí que estamos avançando? O disco terminou outra vez e eu puxei a agulha com cuidado, retirei do prato, guardei na capa. Dedilhei os que estavam ali ao lado até achar o que seria apropriado para aquela situação. Come from the shadows, Joan Baez. "Pode ser esse?", mas antes disso, pra evitar o que havia acontecido antes, quando ela respondeu "Deixa pra lá...", eu disse pra ela que O jogo da amarelinha não valia como argumento. E que, "Ok, a peça poderia ter um esquema mal colado." Mas aí eu caí dentro de um campo de instabilidade quando coloquei o disco na vitrola, porque eu me lembrei do Clube da Serpente e do protagonista d´O jogo da amarelinha. E de como sempre que lia esse livro, eu achava esse cara adorável e filha da puta ao mesmo tempo, mas eu não toquei nesse assunto com ela. Voltei a falar sobre a peça. "A ideia da peça é essa mesmo. De ser uma colagem, você entende?" E então Joan Baez começou a quase rezar uma canção: Bangladesh... Bagladesh... Mas eu não podia me desviar, porque o gato já me encarava com um cinismo irresistível, pedindo pra que eu reagisse ou ele ia achar que eu não merecia mesmo aquela mulher. Mesmo assim, eu ainda pensei no quanto gostava mais da voz de Johnny Mitchell. Ela continuou com vontade de defender seu ponto vista, já que eu havia tocado nesse assunto.
- Eu entendo que não é mais necessário começo, meio e fim. 
Em vez de deixar que ela continuasse, o que eu fiz? Cortei a frase no meio com comentários sequenciados, como um vaudeville que invade o palco no momento mais denso do espetáculo: "A peça é difusa, tem algo de esquizo, gago. Mas e se essa era mesmo a pretensão do diretor? Tudo bem, tudo bem (Ah, ela é tão linda, tão linda com esse gato aí do lado, por que não ficamos simplesmente em silêncio? Por que eu fui escolher Joan Baez, que péssima escolha.), reconheço que tem mesmo algo de pretensioso na peça, isso de querer educar o público e mostrar uma ... mensagem edificante...." Nesse ponto da minha frase, o gato desistiu de novo e foi cuidar a vida dele num outro canto da casa. Ela manteve-se calma. Sorriu como se percebesse que eu estava nervosa e eu percebi que ela percebeu e fiquei tímida, porque fico mesmo tímida às vezes quando percebo que perceberam a minha tentativa de mostrar segurança. Um desastre. 
- No ato dramático (juro que ela usou essa expressão) dessa companhia, enfia-se qualquer experimentalismo e tá feita a dramaturgia. 
Confesso que achei interessante o que ela disse. Gostei da certeza com que ela segurou esse argumento. O pior é que esse lance de experimentalismo já havia me irritado em algumas tentativas desastrosas de produzir literatura. Se era bom, era excelente; mas se era ruim, era como um peixe ensaboado. Por mais que se quisesse provar que era ruim, havia sempre a possibilidade de alguém justificar o quanto era bom. Enfim, eu estava quase começando a concordar com ela. mas aí lembrei de outras peças com essa mesma... vamos dizer... pegada. E insisti. "Você viu aquela releitura d`A gaivota? Veio o ano passado pra cá. Ficou pouco tempo. 
- Vi sim. Gostei. Ainda que, burra, não tenha entendido tudo. Eu preciso ir mais ao teatro. O lance é que eu não gosto muito de teatro, eu já te disse isso. Mas talvez seja porque não entendo. 
"Não diga isso. Você está me chamando de burra quando diz que você é burra." Assim que falei isso, repeti a frase pra mim mesma pra ver se o que eu tinha dito não era uma coisa... sem sentido. E nesse momento Joan Baez começou a cantar Imagine e eu tive que interromper o assunto: "Posso pular essa música?". Ela fez um ok com a cabeça e prosseguiu com o assunto.
- Olha, é sério, eu não tenho estofo nenhum pra discutir teatro. Vou quase nada pro teatro e não me vanglorio não.
"Tudo bem, eu entendo o que você quer dizer, mas é que quando você vem com essa de que é burra e não entende nada sobre teatro e mesmo assim me dá vários argumentos de que a peça pode ser mesmo ruim eu fico sem saber o que dizer. E, olha, você pode ter razão. De repente a peça é mesmo ruim e eu não percebi. Então vamos começar de novo, Você sabe por que eu gostei da peça?. Vou te dizer. Eu fiquei feliz porque vi que as pessoas estavam gostando e pensei, caralho, as pessoas estão gostando dessa coisa fragmentada?! Isso eu também sei fazer! Pode ser que seja mesmo interessante isso. Pode ser que as pessoas estejam prontas pra gostar do que eu faço... 
- Pare com isso. Você escreve bem. E eu só fui ver a peça porque você me convenceu de que o diretor era muito bom. Os clichês, ah, talvez os clichês não tenham comprometido nada mesmo...
O ponto de instabilidade interferiu de novo. Mas não tinha a ver com nada do que estávamos falando. Eu estava mesmo era pensando nas palavras. Estava mesmo era pensando em como se perde tempo com isso de sobrecarregar demais o outro com mil questões como um barco à deriva; aliás, dois barcos em oceanos distintos e um mar de argumentos em volta e a tentativa de compreender e convencer e compreender. Na realidade, eram só fragmentos. Enquanto isso o gato ficou junto dela novamente. Ela começou novamente a acariciar o pelo dele. Ficamos em silêncio. Não havia necessidade de nenhuma palavra. E quando Johnny Mitchell começou a cantar, ela ergueu os olhos pra mim e sorriu e ficamos assim por um bom tempo. Era somente uma sensação. Uma ótima sensação. Nada mais.
E a peça. Bom... foda-se a peça.