terça-feira, 22 de março de 2016

Carta aos Surdos para uso dos que Ouvem



 
O rabo de foguete voltou a transitar pelos céus
Há quem diga que sua carcaça é da cor preferida daquela atriz de cinema
Outros juram que tem a mesma cor do focinho de um cão de rua
Ouvimos um barulho, mas não sabemos bem de onde veio
Parece que começou naquele restaurante em Portugal
Enquanto os amigos escolhiam o que pedir para o jantar
A moça agarrou a faca mais pontuda
e desferiu golpes contra os próprios olhos
Fizeram um curativo improvisado com o guardanapo de seda
E todos saíram para dançar
Com os olhos cobertos, ela foi a que mais se divertiu
Depois teve aquele outro episódio
Televisionado em horário nobre
Mostrando todas as etapas de como se prepara um cordeiro
Escolher o mais tenro que ainda esteja amamentando
Separá-lo da mãe e depois é só matar, escalpelar, cozinhar e saborear
Os que comiam carne ficaram escandalizados
Como alguém poderia ser tão violento assim!
Marcharam em passeata até sua casa
Bateram em sua porta e ameaçaram arrombá-la
Esse assunto foi motivo de muitas conversas
Durante o almoço e o jantar
Enquanto degustavam um bife suculento
Não se falava em outra coisa
- Como alguém poderia ser tão violento assim!
- Um assassino como esse não pode transitar entre as pessoas normais
Pessoas normais com todos os dentes na boca
Pessoas normais com duas pernas e dois braços
Pessoas normais de acordo com o que a natureza diz
Pelo jeito que esse aí pensa, não parece uma pessoa normal
Aquele bêbado com chapéu-coco jamais será normal
Para se construir um país decente em que as pessoas vivam em paz 
é urgente assassinar esses anormais
Esses que querem avacalhar com a ordem familiar
Esses que querem adulterar o que a natureza determinou
Esses que querem tirar do macho o poder de conduzir a fêmea
Tudo começou a ficar assim com a chegada dos anormais
Antes havia silêncio e a ordem reinava em todas as ruas
Os bois eram mortos num abatedouro afastado da cidade
E a carne era toda acondicionada em bandejas de isopor
Os cortes bem arrumados nas prateleiras dos supermercados
Depois que as vísceras do bicho foram exibidas
Era urgente encontrar o assassino e quem ousasse defendê-lo
Os açougueiros mais antigos da cidade foram convocados em reunião
Só eles eram capazes de assassinar quem mostrasse o boi sendo morto
Afinal era uma prática secreta e destinada a alguns escolhidos
Com as mãos sujas de sangue protocolaram o tratado de paz
Quando o martelo erguido batesse sobre a mesa
Começariam as execuções